terça-feira, 7 de julho de 2015

O que Jesus disse? O que Jesus não disse?

Vitor Grando

Na última década, vimos o surgimento de um movimento fortemente antiteísta, que veio a ser denominado por neoateísmo e conhecido pelas suas mordazes críticas a toda religião, em especial ao cristianismo.

Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris são quatro dos principais “evangelistas” do movimento. Na esteira dessa empreitada, surge Bart D. Ehrman. À diferença dos demais, Ehrman é um especialista naquilo que é alvo de seus ataques. Ph.D em teologia pela Universidade de Princeton, ele é um dos principais especialistas em crítica textual do Novo Testamento dos nossos dias.

Usando de toda sua bagagem teórica e indiscutível autoridade acadêmica, ele nos tenta mostrar que o Novo Testamento tal como nós o temos hoje não é textualmente confiável, por ter sido vítima, supostamente, de milhares de alterações voluntárias e involuntárias nas mãos dos copistas ao longo dos séculos. Daí o título provocador de seu livro, que insinua logo de cara que, digamos, nem tudo que Jesus
disse foi, de fato, dito por ele.

Longe de ser uma obra rasa de apologética agnóstica, é indiscutível a qualidade do livro, tanto pelo conhecimento técnico dos temas tratados que o autor possui como pela sua linguagem fácil e perfeitamente acessível ao público leigo, o que torna tal obra, talvez, a melhor introdução à crítica textual em português. No entanto, não obstante a qualidade do livro, a proposta a que o título do livro alude passa longe de ser alcançada.

Bart [foto] começa seu livro narrando sua história de conversão à fé cristã evangélica, o seu processo de “nascer-de-novo”, o preenchimento do “vazio interior”, que, segundo ele, era simplesmente devido ao fato de ser um adolescente. Para ele, esse vazio é natural na fase da adolescência.

O autor interpreta criticamente sua história de conversão e a atribui à persuasão de seu líder Bruce, da Youth For Christ, e de sua capacidade de citar a Bíblia espontaneamente. Tudo lhe parecia muito persuasivo.

Bart decidiu entrar para o Moody Bible Institute, sendo que seu objetivo inicial era tornar-se uma voz ativa do meio cristão entre os pesquisadores seculares. No entanto, ao ter contato com a língua grega, ele começa a perceber a diferença entre os “originais” em grego e as traduções modernas da Bíblia.

Ele, então, começa a pôr em xeque a credibilidade da doutrina da inspiração divina das Escrituras, visto que dos manuscritos gregos às traduções há grandes divergências que não permitem uma compreensão precisa do sentido dos textos bíblicos.

Até que em Princeton, depois de argumentar numa monografia em que tentava justificar um erro textual de Marcos 2 em que diz “Quando Abiatar era sumo-sacerdote” (Que na verdade era Abimeleque, seu pai. 1Sm 21.1-6) recebe como resposta de seu professor um “Talvez Marcos simplesmente tenha errado.”

Essa resposta fez as comportas se lhe abrirem: provavelmente haveria outros erros nas Escrituras.

Bart, então, nos mostra a importância fundamental do livro para o cristianismo, não só dos textos sagrados, mas também martiriológios, apologias, tratados e regras eclesiásticas. O segundo capitulo é sobre a ignorância dos copistas antigos, que muitas vezes nem sequer sabiam ler mas apenas copiavam o que “liam” por imitação, isso aliado ao estado em que se encontravam os textos gregos – muitos deles eram escritos em scriptuo continua, ou seja, sem pontuação e às vezes nem sequer espaço entre as palavras – tornavam a tarefa de reproduzir um texto altamente problemática.

Bart cita o fato de as primeiras cópias dos livros do Novo Testamento serem produzidas não por copistas profissionais, mas sim pelos membros ricos e instruídos das Igrejas como um motivo a mais para descrermos na precisão das cópias. O curioso é que no capítulo anterior, Bart diz que os copistas profissionais muitas vezes nem sequer sabiam ler; ora, se essa era a realidade, não seria então de se esperar que as cópias produzidas pelos membros mais instruídos das Igrejas fossem ainda mais precisas?

Alguns dos textos selecionados pelo autor para nos apresentar as controvérsias textuais neotestamentárias são os seguintes: A Epístola de Paulo aos Gálatas. Quanto ao texto de Gálatas, Ehrman busca descredibilizar não só a transmissão das cópias, mas também o próprio autógrafo. Seu raciocínio é que tendo essa carta sido escrita provavelmente por um copista-secretário e não pelo próprio Paulo, a dúvida que surgiria desse procedimento comum da época seria se, tendo Paulo ditado a carta, teria ele ditado palavra por palavra? Ou teria lhe exposto o cerne da mensagem e permitido ao copista preencher o restante? Ambos os métodos eram comumente usados nas cartas escritas na antiguidade. Mas sendo esse o procedimento, como podemos saber que o copista ou preencheu o restante da forma exata que Paulo desejava ou escreveu exatamente as palavras que Paulo ditou sem incorrer em qualquer erro?

É curioso que Bart Ehrman veja nisso razão suficiente para se duvidar da integridade do autógrafo, afinal não é preciso nenhum conhecimento técnico de crítica textual para se presumir que uma carta ditada a um copista tenha sua redação final revista e ratificada por aquele que lhe ditou.

Assim sendo, já começamos a perceber a fragilidade do elo entre as premissas de Ehrman e as conclusões que ele pretende extrair. 1Corintios 5-8. Paulo, nessa passagem, nos adverte contra a perversidade. Isso, pelo menos, é o texto ao qual nós temos acesso pelas nossas traduções. Mas em alguns manuscritos não é contra a perversidade (PONERAS) que Paulo nos adverte, mas sim contra a imoralidade sexual (PORNEIAS).

É difícil imaginar como essa controvérsia textual poderia sustentar a conclusão central do livro, pois ainda que o sentido do texto nos seja completamente obscuro, isso dificilmente alteraria qualquer elemento central da ética cristã, afinal tanto a imoralidade sexual quanto a perversidade, além de palavras de sentido próximo, são condenadas em inúmeras outras passagens das Escrituras e, portanto, não são dependentes exclusivamente de 1 Coríntios 5:8.

O fato de supostamente não sabermos o que Paulo de fato escreveu não acarreta nenhuma consequência relevante para a ética cristã. Apocalipse 1.5.

Também aconteciam erros com palavras homófonas. Isso se dava quando um copista copiava um texto que estava sendo ditado. No caso de Apocalipse 1.5 onde o autor diz “nos livrou de nossos pecados”. O termo grego para “livrou” (LUSANTI) soa exatamente como o termo “lavou” (LOUSANTI). Portanto, não é de surpreender que em certo número de manuscritos medievais o autor ore àquele que “nos lavou de nossos pecados”.

Mais uma vez, não se vê qualquer consequência doutrinária relevante dessa controvérsia textual, já que a expressão “nos livrou de nossos pecados” e “nos lavou de nossos pecados” são de sentido muito próximo. Romanos 12.11.

Muitas vezes, para ganhar tempo e espaço, os copistas abreviavam certas palavras. Abreviaturas muito comuns envolviam o que os pesquisadores chamam de nomina sacra (nomes sagrados), um grupo de palavras como Deus, Cristo, Senhor, Jesus e Espírito, que vinham abreviadas ou porque ocorriam muito frequentemente ou para mostrar que elas deviam ser objeto de atenção especial.

Por vezes, essas várias abreviaturas levavam copistas posteriores a uma espécie de confusão, porque eles confundiam uma abreviatura com outra ou tomavam uma abreviatura por uma palavra inteira. Por exemplo, em Romanos 12.11, Paulo exorta seu leitor a “servir ao Senhor”. Mas a palavra Senhor - KURIOW - geralmente era abreviada nos manuscritos por ΚW (com uma linha em cima), o que levou alguns copistas antigos a entendê-la como abreviatura de KAIRW, que significa “tempo”. Desse modo, nesses manuscritos, Paulo exorta seu leitor a “servirem ao tempo”. Mais uma vez não nos resta dúvidas sobre qual palavra constava no texto original de Paulo, o próprio Bart explica o motivo da confusão.

Existem outras controvérsias textuais citadas pelo autor como a dúvida em relação à autenticidade da história da mulher adúltera em João 8, os 12 últimos versículos de Marcos, a passagem de 1 João que afirma explicitamente a Trindade, entre outras. Mesmo se tais passagens não forem autênticas, elas não têm a capacidade de alterar nada do que os cristãos creem, visto que a misericórdia de Jesus Cristo não é exclusividade da história de João 8, a ressurreição de Jesus Cristo não é exclusiva dos versículos finais de Marcos (vide o credo de 1Co15), e a Trindade pode ser deduzida de outras passagens da Escritura, além da passagem de 1 João.

O sentido pleno das Escrituras não é ameaçado por controvérsias textuais; não é a toa que Bruce Metzger, mentor de Bart Ehrman, e um dos maiores críticos textuais do século XX, permaneceu um crente fiel às Escrituras por toda sua vida.

Não é de se surpreender que em alguns manuscritos existam alterações grosseiras ao texto bíblico, já que é de se esperar que, assim como muitos deturpam o sentido das Escrituras hoje, o mesmo acontecesse no passado.

É certamente verdade que nós não possuímos um texto cem por cento confiável do Novo Testamento e a consciência disso talvez nos leve a rever práticas exegéticas em que se enfatiza demasiadamente uma única palavra no texto.

Contudo, não obstante a falta de perfeita precisão textual do Novo Testamento, ainda assim podemos ter certeza da confiabilidade do conjunto.

O livro termina com a sensação de que não cumpriu o intento alardeado.

Certamente trata-se de um excelente primeiro contato com a crítica textual e as controvérsias textuais do Novo Testamento. No entanto, o sensacionalismo de Bart Ehrman não se justifica perante as suas premissas, que não sustentam as conclusões acerca da confiabilidade do Novo Testamento, que são um completo non sequitur.

No máximo, o que ele apresenta constitui um desejável corretivo àqueles que defendem uma visão rigorosa de “inerrância das Escrituras”.

Todavia, desde os Pais da Igreja os cristãos estavam cientes das aparentes divergências nos textos escriturísticos e ainda mantinham uma elevada visão das Escrituras. A ênfase na doutrina da inerrância é uma característica típica dos nossos dias e não da tradição apostólica.

Ademais, o que afinal Jesus disse e não disse? Terminamos sem saber, uma vez que nenhum dos textos tratados, por mais incrível que possa parecer, trata de palavras de Jesus. 
Resenha: Vitor Grando, Bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Sul do Rio de Janeiro.

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