Vitor Grando
Na última década, vimos o
surgimento de um movimento fortemente antiteísta, que veio a ser denominado por
neoateísmo e conhecido pelas suas mordazes críticas a toda religião, em
especial ao cristianismo.
Christopher Hitchens, Daniel
Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris são quatro dos principais “evangelistas”
do movimento. Na esteira dessa empreitada, surge Bart D. Ehrman. À diferença
dos demais, Ehrman é um especialista naquilo que é alvo de seus ataques. Ph.D
em teologia pela Universidade de Princeton, ele é um dos principais
especialistas em crítica textual do Novo Testamento dos nossos dias.
Usando de toda sua bagagem
teórica e indiscutível autoridade acadêmica, ele nos tenta mostrar que o Novo
Testamento tal como nós o temos hoje não é textualmente confiável, por ter sido
vítima, supostamente, de milhares de alterações voluntárias e involuntárias nas
mãos dos copistas ao longo dos séculos. Daí o título provocador de seu livro,
que insinua logo de cara que, digamos, nem tudo que Jesus
disse foi, de fato, dito por
ele.
Longe de ser uma obra rasa de
apologética agnóstica, é indiscutível a qualidade do livro, tanto pelo
conhecimento técnico dos temas tratados que o autor possui como pela sua linguagem
fácil e perfeitamente acessível ao público leigo, o que torna tal obra, talvez,
a melhor introdução à crítica textual em português. No entanto, não obstante a
qualidade do livro, a proposta a que o título do livro alude passa longe de ser
alcançada.
Bart [foto] começa seu livro narrando sua história de conversão à fé cristã evangélica, o seu processo de “nascer-de-novo”, o preenchimento do “vazio interior”, que, segundo ele, era simplesmente devido ao fato de ser um adolescente. Para ele, esse vazio é natural na fase da adolescência.
O autor interpreta
criticamente sua história de conversão e a atribui à persuasão de seu líder
Bruce, da Youth For Christ, e de sua capacidade de citar a Bíblia
espontaneamente. Tudo lhe parecia muito persuasivo.
Bart decidiu entrar para o
Moody Bible Institute, sendo que seu objetivo inicial era tornar-se uma voz
ativa do meio cristão entre os pesquisadores seculares. No entanto, ao ter
contato com a língua grega, ele começa a perceber a diferença entre os
“originais” em grego e as traduções modernas da Bíblia.
Ele, então, começa a pôr em
xeque a credibilidade da doutrina da inspiração divina das Escrituras, visto
que dos manuscritos gregos às traduções há grandes divergências que não
permitem uma compreensão precisa do sentido dos textos bíblicos.
Até que em Princeton, depois
de argumentar numa monografia em que tentava justificar um erro textual de
Marcos 2 em que diz “Quando Abiatar era sumo-sacerdote” (Que na verdade era
Abimeleque, seu pai. 1Sm 21.1-6) recebe como resposta de seu professor um
“Talvez Marcos simplesmente tenha errado.”
Essa resposta fez as comportas
se lhe abrirem: provavelmente haveria outros erros nas Escrituras.
Bart, então, nos mostra a
importância fundamental do livro para o cristianismo, não só dos textos
sagrados, mas também martiriológios, apologias, tratados e regras
eclesiásticas. O segundo capitulo é sobre a ignorância dos copistas antigos,
que muitas vezes nem sequer sabiam ler mas apenas copiavam o que “liam” por
imitação, isso aliado ao estado em que se encontravam os textos gregos – muitos
deles eram escritos em scriptuo continua,
ou seja, sem pontuação e às vezes nem sequer espaço entre as palavras –
tornavam a tarefa de reproduzir um texto altamente problemática.
Bart cita o fato de as
primeiras cópias dos livros do Novo Testamento serem produzidas não por
copistas profissionais, mas sim pelos membros ricos e instruídos das Igrejas
como um motivo a mais para descrermos na precisão das cópias. O curioso é que
no capítulo anterior, Bart diz que os copistas profissionais muitas vezes nem
sequer sabiam ler; ora, se essa era a realidade, não seria então de se esperar
que as cópias produzidas pelos membros mais instruídos das Igrejas fossem ainda
mais precisas?
Alguns dos textos selecionados
pelo autor para nos apresentar as controvérsias textuais neotestamentárias são
os seguintes: A Epístola de Paulo aos Gálatas. Quanto ao texto de Gálatas,
Ehrman busca descredibilizar não só a transmissão das cópias, mas também o
próprio autógrafo. Seu raciocínio é que tendo essa carta sido escrita
provavelmente por um copista-secretário e não pelo próprio Paulo, a dúvida que
surgiria desse procedimento comum da época seria se, tendo Paulo ditado a
carta, teria ele ditado palavra por palavra? Ou teria lhe exposto o cerne da
mensagem e permitido ao copista preencher o restante? Ambos os métodos eram
comumente usados nas cartas escritas na antiguidade. Mas sendo esse o procedimento,
como podemos saber que o copista ou preencheu o restante da forma exata que
Paulo desejava ou escreveu exatamente as palavras que Paulo ditou sem incorrer
em qualquer erro?
É curioso que Bart Ehrman veja
nisso razão suficiente para se duvidar da integridade do autógrafo, afinal não
é preciso nenhum conhecimento técnico de crítica textual para se presumir que
uma carta ditada a um copista tenha sua redação final revista e ratificada por
aquele que lhe ditou.
Assim sendo, já começamos a
perceber a fragilidade do elo entre as premissas de Ehrman e as conclusões que
ele pretende extrair. 1Corintios 5-8. Paulo, nessa passagem, nos adverte contra
a perversidade. Isso, pelo menos, é o texto ao qual nós temos acesso pelas
nossas traduções. Mas em alguns manuscritos não é contra a perversidade
(PONERAS) que Paulo nos adverte, mas sim contra a imoralidade sexual
(PORNEIAS).
É difícil imaginar como essa
controvérsia textual poderia sustentar a conclusão central do livro, pois ainda
que o sentido do texto nos seja completamente obscuro, isso dificilmente
alteraria qualquer elemento central da ética cristã, afinal tanto a imoralidade
sexual quanto a perversidade, além de palavras de sentido próximo, são
condenadas em inúmeras outras passagens das Escrituras e, portanto, não são
dependentes exclusivamente de 1 Coríntios 5:8.
O fato de supostamente não
sabermos o que Paulo de fato escreveu não acarreta nenhuma consequência
relevante para a ética cristã. Apocalipse 1.5.
Também aconteciam erros com
palavras homófonas. Isso se dava quando um copista copiava um texto que estava
sendo ditado. No caso de Apocalipse 1.5 onde o autor diz “nos livrou de nossos
pecados”. O termo grego para “livrou” (LUSANTI) soa exatamente como o termo
“lavou” (LOUSANTI). Portanto, não é de surpreender que em certo número de
manuscritos medievais o autor ore àquele que “nos lavou de nossos pecados”.
Mais uma vez, não se vê
qualquer consequência doutrinária relevante dessa controvérsia textual, já que
a expressão “nos livrou de nossos pecados” e “nos lavou de nossos pecados” são
de sentido muito próximo. Romanos 12.11.
Muitas vezes, para ganhar
tempo e espaço, os copistas abreviavam certas palavras. Abreviaturas muito
comuns envolviam o que os pesquisadores chamam de nomina sacra (nomes sagrados), um grupo de palavras como Deus,
Cristo, Senhor, Jesus e Espírito, que vinham abreviadas ou porque ocorriam
muito frequentemente ou para mostrar que elas deviam ser objeto de atenção
especial.
Por vezes, essas várias
abreviaturas levavam copistas posteriores a uma espécie de confusão, porque
eles confundiam uma abreviatura com outra ou tomavam uma abreviatura por uma
palavra inteira. Por exemplo, em Romanos 12.11, Paulo exorta seu leitor a
“servir ao Senhor”. Mas a palavra Senhor - KURIOW - geralmente era abreviada
nos manuscritos por ΚW (com uma linha em cima), o que levou alguns copistas
antigos a entendê-la como abreviatura de KAIRW, que significa “tempo”. Desse
modo, nesses manuscritos, Paulo exorta seu leitor a “servirem ao tempo”. Mais
uma vez não nos resta dúvidas sobre qual palavra constava no texto original de
Paulo, o próprio Bart explica o motivo da confusão.
Existem outras controvérsias
textuais citadas pelo autor como a dúvida em relação à autenticidade da
história da mulher adúltera em João 8, os 12 últimos versículos de Marcos, a
passagem de 1 João que afirma explicitamente a Trindade, entre outras. Mesmo se
tais passagens não forem autênticas, elas não têm a capacidade de alterar nada
do que os cristãos creem, visto que a misericórdia de Jesus Cristo não é
exclusividade da história de João 8, a ressurreição de Jesus Cristo não é exclusiva
dos versículos finais de Marcos (vide o credo de 1Co15), e a Trindade pode ser
deduzida de outras passagens da Escritura, além da passagem de 1 João.
O sentido pleno das Escrituras
não é ameaçado por controvérsias textuais; não é a toa que Bruce Metzger,
mentor de Bart Ehrman, e um dos maiores críticos textuais do século XX,
permaneceu um crente fiel às Escrituras por toda sua vida.
Não é de se surpreender que em
alguns manuscritos existam alterações grosseiras ao texto bíblico, já que é de
se esperar que, assim como muitos deturpam o sentido das Escrituras hoje, o
mesmo acontecesse no passado.
É certamente verdade que nós
não possuímos um texto cem por cento confiável do Novo Testamento e a
consciência disso talvez nos leve a rever práticas exegéticas em que se
enfatiza demasiadamente uma única palavra no texto.
Contudo, não obstante a falta
de perfeita precisão textual do Novo Testamento, ainda assim podemos ter
certeza da confiabilidade do conjunto.
O livro termina com a sensação
de que não cumpriu o intento alardeado.
Certamente trata-se de um
excelente primeiro contato com a crítica textual e as controvérsias textuais do
Novo Testamento. No entanto, o sensacionalismo de Bart Ehrman não se justifica
perante as suas premissas, que não sustentam as conclusões acerca da
confiabilidade do Novo Testamento, que são um completo non sequitur.
No máximo, o que ele apresenta
constitui um desejável corretivo àqueles que defendem uma visão rigorosa de
“inerrância das Escrituras”.
Todavia, desde os Pais da
Igreja os cristãos estavam cientes das aparentes divergências nos textos
escriturísticos e ainda mantinham uma elevada visão das Escrituras. A ênfase na
doutrina da inerrância é uma característica típica dos nossos dias e não da
tradição apostólica.
Ademais, o que afinal Jesus
disse e não disse? Terminamos sem saber, uma vez que nenhum dos textos
tratados, por mais incrível que possa parecer, trata de palavras de Jesus.
Resenha: Vitor Grando, Bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Sul do
Rio de Janeiro.
Publicado originariamente na Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 9, n. 15, jan/jun, 2015, p.183-187
Belo e ilustrativo texto...
ResponderExcluirValdemar