Admitindo que possam ser discutíveis,
relativizar o valor moral dos termos direita e esquerda não só não resolve
nenhum dos desafios do tempo atual, como ainda diminui a capacidade de os compreender.
Gabriel Mithá Ribeiro
Os sujeitos individuais e
coletivos apenas fazem sentido em função de uma orientação moral que, no século
XX, se tornou diretamente dependente da ação política. É o sentido que esta
impõe à moral social que explica, a médio e a longo prazo, se sociedades e
povos caminham para a estabilidade social e política e para a prosperidade
econômica ou se, pelo contrário, não se conseguem libertar da instabilidade e
consequente incapacidade de gerarem riqueza.
Desenvolvi a tese num livro recente que parte de dois pressupostos. Primeiro, o sucesso ou o fracasso das sociedades é
determinado pelo primado moral e, segundo, o século XX gerou a fragmentação
moral das sociedades na sequência da sedimentação do confronto identitário,
político, social ou cultural entre a direita e a esquerda, uma vez que cada um
desses campos existe em função de uma orientação moral que lhe é própria.
A da direita, de tendência
social conservadora, deriva de uma matriz milenar fundada no princípio da
autorresponsabilidade. A da esquerda, de tendência social reformista ou
revolucionária, é produto de uma matriz hoje secular orientada pelo ideal de
vitimização. Tais pressupostos morais são tão inconfundíveis quanto tornados
incompatíveis entre si por causa do jogo político das democracias tal como se
consolidou após a segunda guerra mundial (1939-1945).
Porque as democracias não
funcionam sem um substrato moral, se elas admitem a ambiguidade política (situar-se
entre a direita e a esquerda), o mesmo não acontece na dimensão moral. Pela
natureza maniqueísta dos seus princípios (Bem/Mal, Justo/Injusto,
Certo/Errado), a última não admite ambiguidades (direita e a esquerda, e os
demais, apenas existem moralmente se não se confundirem a si mesmos com o campo
político concorrente). Fugir a esse dilema significa alimentar o pântano
moral das sociedades.
Admitindo que possam ser
discutíveis, relativizar o valor moral dos termos direita e esquerda não
só não resolve nenhum dos desafios do tempo atual, como ainda diminui a
capacidade de os compreender e encontrar respostas.
Parto de um caso tipo
familiar.
Antes e depois de se aproximar
do estalinista Partido Comunista Português (PCP) ou do trotskista Bloco
de Esquerda (BE), o social-democrata Partido Socialista (PS)
nunca deixou de estar integrado no seu campo moral, o da esquerda, e tem até
reforçado essa integração. Não é o que acontece com o Partido Social Democrata
(PSD), um partido com rótulo e conteúdo equívocos, ou com o democrata-cristão
Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP). Não são os
primeiros, mas os últimos que se arrastam na desorientação moral.
PSD e CDS-PP insistem em se demarcar
moralmente das outras direitas (o ódio visceral primário a
Trump e Bolsonaro é sintomático), atitude que não se detecta no campo moral das
esquerdas.
Se foi possível ao PS, PSD e
CDS integrarem, em 1975, o totalitário PCP no jogo democrático de modo a evitar
uma guerra civil, justamente por temerem à época a capacidade destruidora do
comunismo, o que viabilizou a democracia portuguesa e domesticou a violência
comunista, hoje torna-se difícil compreender as razões do PSD e do CDS-PP para
não se esforçarem e fazerem o mesmo em relação aos novos partidos que integram
o seu próprio campo político. Ao contrário do PCP de 1975 (e de hoje, tal como
do BE), essa atitude é a confissão de os novos partidos da direita não serem
ameaçadores para as sociedades, democracias e respetivas instituições. Se o
fossem, em Portugal e na Europa, seriam tratados com outro respeito e
tolerância, tal como se fez em Portugal, em 1975, com o PCP ou tal como se faz
hoje em relação à presença islâmica no Ocidente. Não é respeito, é medo.
Considerando que a moral
social de todas as direitas parte do princípio da autorresponsabilidade
individual, familiar ou coletiva, tal princípio alimenta necessariamente a
ambição da autonomia e do reforço da sociedade na sua relação com o poder tutelar
estado e, desse modo, promove de modo efetivo o respeito e a dignificação do
indivíduo e da propriedade e iniciativa privadas. A autorresponsabilidade na
versão coletiva também confere legitimidade moral a um certo pendor
nacionalista ou patriótico identificado com a história e a identidade coletiva
multissecular de cada povo e respetivas instituições (da nacionalidade à
família) e, nessa sequência, a imigração ilegal ou desregulada nunca pode ser
moral e socialmente legitimada. O princípio da autorresponsabilidade gera ainda
incompatibilidades morais inultrapassáveis face a engenharias sociais que
promovam a discriminação negativa ou positiva, em particular as que se promovem
através da aplicabilidade da lei ou se manifestam em atitudes face ao exercício
da autoridade ou da imposição da ordem.
Todo esse conjunto de ambições
é moral e socialmente defensável através da ação política por se revelar
indispensável à saúde mental dos povos e à viabilidade de qualquer sociedade.
Uma legitimidade dessa natureza é até reforçada em contextos sociais nos quais
a esquerda é hegemônica.
A esquerda, recorde-se, tem
como pressuposto o ideal de vitimização que implica, necessariamente, a
imposição da fragmentação das sociedades a partir do primado moral. Isso é
inevitável quando a ambição é a de reparar, por imposição unilateral da ação
política, injustiças que implicam punir os segmentos sociais alegadamente
responsáveis pelo tipo de sociedade existente e que se tem de reformar ou
revolucionar (brancos, ricos, ocidentais, cristãos, patrões, homens, etc.) e
discrimina positivamente as suas alegadas vítimas históricas e sociais (os
antónimos). Nessa perspectiva, o valor moral universal da autorresponsabilidade
individual, familiar ou coletiva é secundarizado ou mesmo anulado e alguém tem
de compensar essa grave falha.
Por outro lado, quando se
confrontam perspectivas morais distintas e concorrentes sobre um mesmo objeto,
a sociedade, não é possível suprimir a cisão entre uma representação do Bem (na
perspectiva dos próprios) e a uma representação do Mal (atribuída
aos concorrentes ou adversários). No livro «12 Regras Para a Vida», Jordan Peterson não
deixa dúvidas a esse respeito recorrendo mesmo, e de uma forma não apenas
metafórica, ao confronto moral entre Deus e o Diabo.
Na sua perspectiva, não é possível ignorar essa característica elementar da
mente humana.
Daí que uma eventual
aproximação entre o PS (centro-esquerda) e o PSD (centro direita) será sempre
contranatura porque partem de pressupostos morais incompatíveis, caso contrário
não seriam persistentemente concorrentes. Se assim não fosse, há muito que
existiria um islamo-cristianismo tendo em conta que essas
religiões, e as pessoas dessas religiões, se cruzam entre si e procuram
compromissos desde a idade média, porém nunca foi ou será possível ultrapassar
a barreira entre elas, uma vez que uns partem do pressuposto moral, com
profundas consequências sociais, da guerra santa e outros
do amor ao próximo, e comprovadamente a história tornou-os
incompatíveis.
Acontece que os socialistas,
tal como toda a esquerda, nunca duvidaram da sua pertença a um campo moral
próprio e, desse modo, não hesitam em remeter os da moral social concorrente, a
direita, para o campo do Mal. Na sua perspectiva têm razão.
Como noutros casos da direita
do poder no Ocidente, em Portugal são o CDS-PP e sobretudo o PSD que ambicionam
o impossível moral ao ostentarem conflitos, muitas vezes preferenciais, no
interior do seu próprio campo político. Mas quando se faz o balanço do último
século, a atitude do CDS-PP e do PSD revela-se ainda mais disfuncional.
Há décadas que a história
revela que apenas existe um campo político cuja moral social é viável: o da
direita. Cometeu crimes, arrependeu-se, não esconde remorsos, regenerou-se. O
complexo de culpa que o alimenta transformou o poder de influência social e
política da direita numa força impulsionadora de estabilidade e prosperidade.
Esse é o lado do Bem, até porque o valor da ação moral resiste à prova do
tempo, o que Freud designou por princípio da realidade: saber
suportar um certo nível de sacrifício e saber adiar a recompensa.
Razões para o meu livro
evidenciar a natureza patológica da esquerda atual (para já não existe outra)
por ela representar o oposto, o lado moral do Mal. Sobre um passado que ainda é
presente, a esquerda recusa-se assumir os crimes do seu campo político, nunca
revelou arrependimentos ou remorsos convincentes por causa desses crimes. Desse
modo, uma esquerda que no passado pode até ter parecido moralmente legítima,
por isso convenceu um número significativo de indivíduos, com o tempo
transformou-se em amoral e, a cada dia que passa, caminha para a imoralidade.
Acontece que o meu livro
fundamenta a tese da patologia moral de esquerda em pressupostos teóricos e
conceptuais claros, não é ambíguo na definição da moral social,
assim como a argumentação é sempre sustentada em evidências empíricas.
Mais não seja porque o livro
existe para que o mundo que partilhamos seja menos violento, assim como para
que sociedades, comunidades e minorias possam encontrar caminhos que lhes
permitam investir por si mesmas na sua prosperidade, em particular as mais
periféricas ou carenciadas e, por outro lado, porque o livro está disponível
nas grandes livrarias portuguesas e é dedicado ao presidente do Brasil, Jair
Bolsonaro (entre outros) – só me resta concluir que o meu livro está a ser alvo de censura pura e dura por ter sido interditado pela Livraria da Travessa nas suas lojas do Brasil e, não menos grave, pelo à vontade com que a Livraria o faz
na terra dos outros, na sua sucursal recentemente aberta em Lisboa.
Salazar ao pé de tais sujeitos
era um menino de coro.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro *, Observador,
7-10-2019
* Autor de Um século de escombros (clique na capa para aceder a parte do conteúdo).
Marcação de Texto: JP
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Artigo muito bom, como sempre.
ResponderExcluirO livro “Um Século de Escombros”, cuja leitura concluirei na viagem que farei até o Porto, amanhã, terça-feira, 8 de outubro, é ótimo. Recomendo vivamente.