Que nos traz de novo a última obra de
António Damásio, Sentir & Saber? Muito, mas destaco permitir inferir sem
ambiguidades que a igualdade e a desigualdade são tão fundamentais quanto
indissociáveis
Gabriel Mithá Ribeiro
Há dias escrevi sobre O
Erro de Descartes (1994), livro de António Damásio. O autor conferiu
um cunho revisto e incisivo aos temas então tratados no novo livro, Sentir
& Saber. A caminho da consciência (Lisboa, Temas e Debates, 2020),
obra incontornável que volta interpelar-nos sobre quem somos, de onde viemos e
para onde caminhamos enquanto espécie humana.
Se bem que o autor não o faça
de modo explícito, parto do pressuposto de não existirem descontinuidades entre
indivíduo e coletivo. Daí que o livro permita inferir que, entre os erros que
mais ameaçam os equilíbrios das nossas sociedades e instituições, está a
sobrevalorização do ideal de igualdade que conquistou larga
supremacia sociopsicológica e sociocultural, a ponto de diabolizar a
legitimidade social da desigualdade.
A tese central do pensamento
de António Damásio é a da plenitude da condição humana resultar do equilíbrio
entre o biológico e o mental, o sujeito e o meio envolvente, o presente e o
longuíssimo percurso histórico desde a mais remota ancestralidade ou o
individual e o social. Nenhuma dessas dimensões pode ser minimizada, subjugada,
descartada, mesmo no campo das escolhas ideológicas mais comuns.
É por isso que a
sobrevalorização política e social da igualdade só não
atentaria contra a condição humana se a nossa espécie se apresentasse, no
presente, como uma caixa vazia à espera de ser preenchida pelos ideólogos de
serviço. Equiparável à de Jordan Peterson, a obra de António Damásio é
demasiado clarividente e irrebatível na recusa liminar de tal possibilidade.
No balanço que se pode fazer
após tão importante aprendizagem, a igualdade é tão
fundamental quanto a desigualdade. Esse é o compromisso
civilizacional mais justo e sustentável ao qual devemos estar obrigados quando
o nosso objeto é o sujeito coletivo.
Dinesh d’Souza e o dilema ocidental
Faço um desvio para introduzir Dinesh D’Souza (The End of Racism, 1996). Este autor demonstra que a civilização ocidental é a que mais e melhor busca, desde a sua origem, os compromissos que equilibram a espécie humana.
Fazendo uma interpretação
livre do seu pensamento, o cristianismo (que conferiu um alcance universal à
tradição judaica ao fazer transitar a ideia de povo eleito do Deus único dos
judeus para a humanidade no seu conjunto), associado à tradição filosófica
iniciada na Grécia da Antiguidade, os dois fundamentos civilizacionais do mundo
europeu ocidental, depois extensível à América do Norte e à Oceania,
determinaram que esse conjunto civilizacional tenha vivido sempre numa tensão
constante entre os seus valores humanos universais, os que impõem a igualdade
do género humano, e a realidade vivencial concreta que negava esses mesmos
valores impondo diferenças na relação com outros povos por razões de
sobrevivência ou de segurança, ou por disputas e ambições territoriais,
económicas, expansionistas, entre outras.
Foi esse dilema irresolúvel
que transformou os povos do Ocidente nos mais dinâmicos dos últimos dois
milénios, e com consequências nos mais variados domínios da vida coletiva
(moral, religioso, intelectual, científico, político, social, económico,
cultural), uma vez que são incapazes de dissociar a universalidade dos seus
princípios existenciais das suas práticas quotidianas autocentradas. Isso
tornou-os eternamente insatisfeitos consigo mesmos, ao mesmo tempo que o dilema
faz com que nunca percam o rumo da sua existência coletiva, mesmo nos momentos
mais ameaçadores.
A fertilidade dessa ambiguidade
faz da civilização de matriz europeia ocidental uma força única de dignificação
e progresso da espécie humana no seu conjunto. Nos últimos dois milénios, ao
mesmo tempo que as ambições de grandeza imperial ou de domínio económico ou de
outra natureza se afirmaram entre os povos ocidentais, no passado com recurso a
processos violentos próprios de cada época, esse lado primário das identidades
europeias ocidentais (id) nunca se desfilia da sua religião, valores
filosóficos ou crenças (o superego coletivo, ou moral social,
que Freud designou por civilização). O último semeia, em
simultâneo, a supressão de violências e injustiças causadas pelos próprios, mas
também influencia os outros, os não-ocidentais, com os quais os europeus
ocidentais interagiram e interagem em situação de poder dentro e fora do seu
território ancestral, na Europa ou nas antigas colónias ultramarinas.
Não por acaso, a quebra moral
no tratamento da diferença acabou por ser tanto mais desastrosa em povos sem
experiências coloniais ultramarinas consolidadas no último meio milénio, como
os alemães e italianos e, fora do ocidente, os russos soviéticos. Também não
foi por acaso que a servidão, o absolutismo, a escravatura, a inquisição, as
ditaduras, o racismo, entre outros atropelos ao universalismo da dignidade
humana, acabaram sempre por ser ultrapassados a partir de dinâmicas que se
geram no interior das sociedades ocidentais. Isso por serem fenómenos
moralmente incómodos para esse mundo, desde as mais remotas origens ao
presente, filiado à sua matriz judaico-cristã e filosófica que se compensam uma
à outra no jogo entre a religiosidade e a laicidade.
Quer dizer que, no Ocidente,
os princípios (universais) acabam sempre por vencer as práticas (autocentradas)
e, uma vez ultrapassados os problemas, eles nunca se repetem, assim como a
autoconsciência ocidental do seu próprio mal é uma constante, ao contrário do
que acontece com as demais civilizações.
António Damásio acendeu uma nova luz
O que é que a última obra de
António Damásio, Sentir & Saber (2020), traz de novo?
Muito, mas limito-me a destacar permitir inferir sem ambiguidades que a igualdade e
a desigualdade são tão fundamentais quanto indissociáveis, e
quanto mais premente a incidência na primeira, tanto mais isso significa que a
biologia, o meio envolvente e a história impuseram diferenças sedimentadas ao
longo de milhões de anos impossíveis de suprimir. Anulando isso, não
compreendemos indivíduos e sociedades diferentes.
Recorro a uma hipótese. Uma
dada tradição alimentar de um povo, ou conjunto circunscrito de povos (limitado
a uma região ou continente), gera determinados equilíbrios bioquímicos nos
organismos humanos que, por seu lado, condicionam as emoções (reações físicas)
e os sentimentos (reações mentais), conjunto indissociável entre si nos
equilíbrios que geram não apenas no interior biológico do sujeito, mas também
da adaptação deste enquanto indivíduo ou coletivo às características concretas
do seu meio envolvente, natural ou sociocultural.
No mesmo sentido, um meio
natural com determinadas características (por exemplo, fauna selvagem até ao
passado recente, um ecossistema ciclicamente marcado pela escassez alimentar ou
um clima mais quente) gera um tipo de emoções (biológicas) e sentimentos
coletivos (contexto sociopsicológico e sociocultural) distintos de um outro
meio natural (com uma fauna menos ameaçadora, com maior disponibilidade
alimentar ou com um clima mais frio).
Trata-se de processos
continuadamente sedimentados ao longo de milhares ou milhões de anos, pelo que
é impossível suprimir diferenças entre comunidades humanas que se desenvolvem
em espaços geograficamente autónomos.
Mais do que a questão racial
ou étnica associada a minorias em contextos estáveis, questão que se é
socialmente significativa é porque traduz pontos de partida civilizacionais
profundamente distintos sedimentados ao longo de milhões de anos que os
indivíduos transportam no presente, isto é, as diferenças inter-raciais ou
interétnicas estão longe de ser ilusórias ou absurdas, o pensamento de António Damásio
conduz à antevisão da perpetuação de diferenças entre identidades coletivas que
se inserem em espaços geográficos distintos, por exemplo na Europa e em África,
uma vez que essas comunidades humanas continuam inseridas em contextos
naturais, sociopsicológicos e socioculturais distintos e, no exemplo em apreço,
seguem hoje rumos muito mais divergentes do que acontecia no tempo dos impérios
ultramarinos europeus.
Por isso, admitir a existência
de áreas civilizacionais com identidades distintas dispersas pelo mundo ou
assumir a relevância humana dos nacionalismos não só não são temas ou fenómenos
absurdos, como absolutamente congruentes com o tratamento digno da plenitude e
complexidade da condição humana.
O dever de preservarmos a ameaçada liberdade de pensamento
Vêm-nos de imediato à memória
os incómodos da abordagem da relação entre europeus e africanos ou entre
brancos e negros. Logo caímos no dilema: ou nos agarramos aos dogmas da igualdade ou
do antirracismo pela incapacidade infantil de gerirmos os
nossos próprios fantasmas e nada mais aprenderemos ou questionaremos; ou
assumimos o dever de nos conhecermos enquanto seres humanos, uma caminhada
sempre inacabada, justa, moral e intelectualmente legítima, bastando para essa
certeza ler António Damásio ou Jordan Peterson.
Resulta muitíssimo claro que,
se não criarmos um espaço público livre para este tipo de discussões, não tarda
estaremos a banir pensadores brilhantes como os dois referidos. A verdade é que
estamos a um passo desse terrível destino da ignorância.
Acrescento que António Damásio
deixa muito claro que aquilo que escreve, assim como o que podemos interpretar
a partir do que ele escreve, não fica encerrado no passado, vale para o
presente e projetar-se-á inevitavelmente no futuro; vale para a ciência e para
o conhecimento, como vale para a vida habitual. A insuprível diferença entre
identidades coletivas prosseguirá numas dimensões, assim como a igualdade
noutras, e ninguém pode antecipar tendências de longo prazo.
Para elucidar, quem hoje está
em certas zonas urbanizadas de Lisboa ou de Maputo não nota diferenças ao nível
da civilização material (edifícios, ruas, lojas, serviços, património edificado
ou natural), porém a criminalidade comparativamente baixíssima num caso
(Lisboa/Portugal/Europa) face à criminalidade recorrente e violenta no outro
(Maputo/Moçambique/África) gera predisposições emotivas (biológicas) e
sentimentais (sociopsicológicas e socioculturais) diferenciadas numa e noutra
identidades coletivas. Um mero exemplo de como contextos convergentes numa
dimensão, a material (objetiva), podem sedimentar divergências noutra dimensão,
a sentimental (subjetiva), sendo que a última confere novos conteúdos a
predisposições distintas sedimentadas ao longo de milhões de anos entre povos que
evoluíram em espaços geográficos (muito) separados.
Em suma, ou aprendemos a ser
mais complexos no modo como pensamos as comunidades humanas articulando
os princípios existenciais com as práticas económicas (ou
outras), assim como a diferença com a igualdade;
ou continuaremos a promover o atropelamento da plenitude e da complexidade
inerentes à condição humana que, inevitavelmente, desemboca em erros,
frustrações, falhanços, desastres, violências, destruição. A liberdade de
pensar faz muita falta. Aproveitemos António Damásio ou Jordan Peterson.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador, 1-1-2021
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