terça-feira, 9 de novembro de 2021

O 11 de Setembro e a seguir: culpam-se os americanos e os judeus

Bruce Bawer

Por volta das três e quinze, hora centro-europeia, na tarde de 11 de setembro de 2001, eu estava a escrever à minha secretária em Oslo quando decidi que precisava de verificar um fato online. Na página do Yahoo reparei numa notícia que entrara há um ou dois minutos. Um avião embatera no World Trade Center. Fui direto à televisão e liguei na CNN. Momentos depois, vi o segundo avião embater. 

Para mim, como para milhões de outros, as horas seguintes foram absolutamente transformadoras – e esclarecedoras.

Eu nunca me sentira mais americano. Ao mesmo tempo, senti uma nova sensação de premência em relação à necessidade de unidade entre os dois continentes que considerava serem a minha casa. Adeptos do islã extremista que tinham consolidado a sua posição em centros urbanos em toda a Europa Ocidental tinham agora atacado a minha terra natal, uma metrópole que era o símbolo mundial destacado de tudo o que o Ocidente representava e que os muçulmanos fundamentalistas desprezavam.

Mudara-me dos Estados Unidos para a Europa como se de um mundo para outro. Contudo, o 11 de setembro fez-me perceber que nunca saíra de casa. Pois, num sentido mais lato, não interessava que estivesse nos Estados Unidos ou na Europa. Juntos, os Estados Unidos e a Europa formavam o Ocidente, o coração da democracia; e ambos estavam agora em guerra contra um inimigo comum.

Até ao 11 de setembro, as minhas experiências com o islã fundamentalista na Europa tinham parecido desligadas da minha vida nos Estados Unidos. Agora, numa questão de minutos, o mundo ficara menor. Nova Iorque e Oslo eram uma só.

À medida que via se desenrolarem os acontecimentos do dia, parecia-me claro que uma tal provocação exigia uma resposta esmagadora. Mas, afinal, outros na Europa Ocidental discordavam. Muitos, seguindo o exemplo dos seus media e dos seus políticos, reagiram a esta atrocidade como se tratasse de um desastre natural – um terramoto ou maremoto.

Esta atitude persistiria durante muito tempo: rotineiramente, a imprensa da Europa Ocidental referir-se-ia ao 11 de Setembro como uma “tragédia”, nunca como um ato de guerra. Nem a maioria dos europeus a considerou como um ataque dirigido contra eles, como depressa me dei conta. Não conseguiam, ou não queriam, reconhecer que estava em curso uma jihad contra o Ocidente; queriam acreditar que o ataque era uma afirmação de raiva e de desespero relacionada com a pobreza (que era de alguma forma culpa dos Estados Unidos), ou com o imperialismo americano, ou com o apoio dos Estados Unidos a Israel.

Assim, na noite daquele 11 de setembro, no nosso costumeiro pouso de dessedentação, amigos e conhecidos puseram-se todos em fila para me oferecerem as suas sinceras condolências, a mim, um americano e nova-iorquino.

Nos dias seguintes, a maior parte da Europa parecia partilhar a sua compreensão amiga. Os cabeçalhos em toda a Europa proclamavam: “Somos todos americanos.” Só mais tarde percebi como eram superficiais e contingentes aquelas expressões de solidariedade.

A 12 de setembro, um palestino que se identificou a um repórter como membro do Hezbollah postou-se à porta da embaixada dos Estados Unidos em Oslo e aplaudiu a carnificina, com o filho pequeno ao lado. A polícia norueguesa reagiu de imediato – pedindo-lhe educadamente que fosse para casa.

Na realidade, nada mudara. Contudo, durante algum tempo eu acreditei, ou tive esperança, que não fosse assim. Muito bem, pensava, agora o disparate vai acabar. Depois disto, os europeus ocidentais verão que estamos juntos nisto. O mundo livre está em guerra contra fanáticos religiosos que desprezam a democracia. Nem sequer os extremistas de esquerda que simpatizam com o comunismo podem desenvolver empatia por estes maníacos homicidas.

Mas enganava-me. À medida que os dias e as semanas passavam, e à medida que se tornava claro que os Estados Unidos, em vez de se desculparem, ou encetarem o diálogo, ou fingirem que nada aconteceu, estavam a planear reagir ao 11 de setembro invadindo o Afeganistão, a reação de muitos quadrantes da Europa Ocidental não foi nada do que eu esperara.

Não se tratava apenas de uma questão de desacordo amigável sobre qual a melhor forma de responder a um inimigo comum. Era um alarido cada vez mais maldoso, irracional e retorcido de ódio contra os Estados Unidos.

Na Itália, o dramaturgo Dario Fo, vencedor do prêmio Nobel da Literatura, acusou os Estados Unidos de matarem todos os anos “dezenas de milhões de pessoas de pobreza”, e apelidou os assassinatos em massa do 11 de setembro de “legítimo” por esse motivo.

Na Alemanha, o compositor Karlheinz Stockhausen descreveu o ataque ao World Trade Center como “a maior obra de arte imaginável no cosmos inteiro”.

E na Grã-Bretanha, o romancista Marin Amis acusou os Estados Unidos de terem “destruído pelo menos cinco por cento da população iraquiana” através das sanções das Nações Unidas.

A escritora americana, Anne Applebaum, que estava em Londres na altura, notou uma mudança de atitude em menos de trinta e seis horas. Numa coluna publicada a 16 de setembro, descreveu um debate na BBC onde um amigo embaixador dos Estados Unidos na Grã-Bretanha, que perdera vários colegas nos ataques, esteve quase a desfazer-se em lágrimas devido ao brutal discurso antiamericano dos outros convidados.

Manifestamente, o establishment da Europa Ocidental, embora adverso a lidar de forma responsável com ameaças verdadeiras, não tinha problemas em pontapear os amigos quando estes se encontravam no chão.

O 11 de Setembro fora “um ataque contra todos nós”? Não, insistiam os editores do jornal sueco Aftonblandet a 17 de setembro. “Os terroristas atacaram o imperialismo americano (...). Os Estados Unidos são o maior assassino em massa do nosso tempo.” Rejeitando o sentimento de que “somos todos americanos”, mantinham: “Nós somos europeus. Somos a única potência no mundo que pode fazer frente aos americanos se estes forem para a frente com os seus planos de iniciar uma longa guerra santa. Uma guerra entre os brancos e os muçulmanos do mundo conduziria, pelo menos, a um desastre de proporções bíblicas aqui na Europa, onde talvez quarente milhões dos nossos concidadãos são muçulmanos.”

O escritor norueguês Gert Nygårdshaug concordava. “Nas últimas semanas fomos levados a pensar erroneamente que somos americanos”, queixou-se a 6 de outubro. “Este ato de falsidade dirigido pelo Pentágono é tão astucioso e bem calculado (...) que a população da Noruega e da Europa está a ser amedrontada e levada a acreditar que, da próxima vez que o terror atacar, poderá ser no aeroporto de Oslo, em Roma ou em Copenhague.” Nygårdshaug não ia nisso:

Desde meados da década de 1960 que os Estados Unidos têm mais ou menos travado uma guerra contínua contra os pobres do mundo... Viajem pelo mundo e perguntem! Falem com pessoas na América Latina, no Egito, no Sudão ou no Paquistão!... Se tiverem estrelas e barras na vossa mochila... é garantido que enfrentarão atitudes de ódio declarado. Mas se exibirem uma bandeira norueguesa, francesa ou italiana? Pura boa vontade e só sorrisos.

Quando Nygårdshaug escreveu isto, ainda estavam a desenterrar corpos no Ground Zero.

A 21 de setembro, um par de “estudiosos da paz” noruegueses, Birgit Brock-Utne e Gunnar Brabo, queixaram-se no Dagbladet que a morte de alguns milhares de pessoas em Nova Iorque estava a receber mais atenção doque o milhão e tal que morrera na guerra Irão-Iraque, ou as centenas de milhares massacradas no Ruanda e no Burundi.
A resposta à violência, insistiam, não é mais violência; pelo contrário, “devemos tentar compreender o que levou os terroristas a cometer um ato tão desesperado – nomeadamente a pobreza – e não os considerar inumanos.

Os autores afirmavam (como se fosse uma verdade universalmente aceita) que a Guerra Fria se baseara num mal-entendido mútuo – nenhuma das partes pretendera realmente ameaçar a outra. A lição que os Estados Unidos deviam retirar do 11 de Setembro era que deviam fazer todo o possível para evitar serem vistos como ameaçadores ou diabólicos. Quatro dias depois, soube-se que doze “catedráticos, professores universitários e outros intelectuais” noruegueses tinham emitido uma proposta para que se nomeasse George W. Bush para o Prémio Nobel da Paz. A premissa era a de que, se ele soubesse que tinha hipóteses de ganhar este glorioso galardão – o orgulho da Noruega- não ”poria o mundo a ferro e fogo”. Eu não sabia se deveria rir, se chorar. Era uma paródia de provincianismo no seu mais patético.

A história dera uma volta dramática e uma dúzia de destacados acadêmicos noruegueses (entre os quais o “catedrático da paz”, Johan Galtung) tinham demonstrado sem sombra de dúvida que não faziam ideia do que se passava.

O Afeganistão foi invadido a 7 de outubro (de 2001). Os europeus do Leste, com as suas recordações do comunismo, não tiveram qualquer problema em compreender do que se tratava: horas depois da invasão, o presidente da Checoslováquia, Václav Havel, proclamou o seu “apoio absoluto a esta operação” – que, escreveu. “protegia os valores da civilização”.

Os seus colegas da Europa Ocidental, contudo, estavam mais interessados em jogos de equivalência moral. Line Fransson, jornalista do Dagbladet, comparou Bush a Bin Laden: “Ambos usam Deus para justificar as suas ações... E ambos dizem ser defensores dos fracos da sociedade e que, no final, a justiça prevalecerá.” O membro do parlamento norueguês, Olav Gunnar Ballo comparou o bombardeamento do Afeganistão com o 11 de setembro.

A invasão provocou manifestações em todas as capitais da Europa. E os media não perderam tempo a descrevê-la como um fracasso, um desastre, um atoleiro. Menos de três semanas depois de ter começado, os editores do Dagbladet, em toda a sua sabedoria, decidiram que chegara a altura de “reavaliar a estratégia contra os talibãs e Bin Laden”. Um dia depois, o jornal sueco Aftonbladet condenou os bombardeamentos da OTAN apelidando-os de terrorismo.

Em novembro de 2001 os talibãs caíram e nenhum dos que utilizaram a palavra “atoleiro” admitiu o seu erro. A atenção virou-se simplesmente para o Iraque e a fúria antiamericana continuou a se intensificar. Eu estava sempre a pensar que não podia piorar, mas continuava simplesmente a piorar. Parecia que cada vez que eu pegava num jornal ou entrava num sítio web de notícias da Europa Ocidental encontrava alguém a declarar que a aliança atlântica morrera.

Para o jornalista norueguês, John Olav Engeland, a gota de água foi Abu Ghraib. Evocando a imagem da Estátua da Liberdade a usar o seu facho como um instrumento de tortura, Engeland declarou que os laços estreitos que liavam a Noruega aos Estados Unidos se tinham quebrado por fim: “A Europa é uma alternativa melhor do que Washington.”

Nisto tudo, é certo, havia uma certa (digamos) duplicidade. Enquanto os políticos e os media se enraiveciam contra os Estados Unidos, a maioria dos países da Europa Ocidental enviava tropas para ajudar a libertar o Afeganistão, e vários – a Grã-Bretanha, a Dinamarca, a Espanha e a Itália – participaram na invasão do Iraque.

A situação na Noruega era reveladora. O governo recusava-se a ajudar a derrubar Saddam e alguns membros do parlamento e ministros denunciaram, vigorosa e frequentemente, as ações “unilaterais” dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, contudo, a fleumática e inflexível ministra da Defesa, KristinKrohn Devold, amiga leal dos Estados Unidos (e boa amiga do norueguês-americano Donald Rumsfeld), falava publicamente como se os dois países ainda fossem firmes aliados e, supõe-se, fazia o possível, dentro das circunstâncias, para ajudar os Estados Unidos.

Lendo entre as linhas, tinha-se a sensação de que, em toda a Europa Ocidental, certos adultos que detinham cargos de responsabilidade (especialmente no que diz respeito à segurança nacional) e que reconheciam o mérito da posição dos Estados Unidos e a importância dos laços da OTAN trabalhavam nos bastidores para preservar a aliança enquanto as crianças cabriolavam no palco, representando o número de “Bush é igual a Saddam”1.

Contudo, persistia o fato de o establishment europeu, guiado pelo que considerava ser obviamente ser um elevado princípio, estar completamente contra a estratégia pós-11 de Setembro de George W. Bush. Com efeito, tornou-se pouco a pouco evidente que o rescaldo dos acontecimentos daquele dia cataclísmico tinha exposto um montão de diferenças filosóficas fundamentais entre os Estados Unidos e a Europa no que diz respeito à paz e à guerra, à liberdade e à tirania.

Para mim, como americano que vivia na Europa pós-11 de Setembro, a dissonância cognitiva era muitas vezes assombrosa.

Os europeus pareciam habitar outro universo mental, um universo onde os Estados Unidos eram o inimigo, Bush era uma ameaça maior do que Osama Bin Laden, e Israel, a única democracia no Médio Oriente, era a única razão dos males da região. Viajando pela Europa de pois do 11 de Setembro, vi-me confrontado, repetidas vezes, com estas opiniões irracionais.

Sim, havia argumentos sensatos contra a invasão do Iraque, e esses argumentos tinham desempenhado um papel significativo no debate americano. (Por exemplo, por que ir atrás de Saddam, que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, quando tantos terroristas eram cidadãos do nosso suposto aliado, a Arábia Saudita?). Mas tais argumentos eram difíceis de encontrar nos media da Europa Ocidental.

A acreditar na maioria dos políticos, acadêmicos e jornalistas da Europa Ocidental, os Estados Unidos estavam simplesmente a utilizar o 11 de Setembro como uma desculpa para conseguir petróleo. Ou para os seus objetivos imperialistas.

Ou George W. Bush estava a armar-se em cowboy? Ou estava a travar uma guerra por razões políticas internas. Ou era um mero fantoche de uma cabala judaica pró-Israel que estava decidida a destruir o islão.

Os media europeus apoiaram sem esforço estas posições. E entregaram-se a um jogo caprichoso de confusão, combinando estas teorias ou mudando de uma para a outra com uma impressionante falta de seriedade.

Ficava-se coma distinta imagem de uma elite tão afastada das realidades dos assuntos internacionais e talvez tão irritada com a sua própria irrelevância no esquema global das coisas e, sobretudo, muito simplesmente incapaz de entender os sentimentos por trás do discurso americano sobre a liberdade versus a tirania, que não conseguia ver a invasão do Iraque como algo mais do que uma oportunidade para erguer, como um facho olímpico, o amor europeu pela paz e pelo diálogo e contrastá-lo incansavelmente com o desejo primitivo dos americanos pela guerra.

Jornalistas já de alguma idade que nunca tinham superado a questão da guerra do Vietnã, e que tinham visto sempre através de uma lente marxista, agarraram a oportunidade de fazer eco da linha de pensamento da esquerda americana de que o Iraque seria outro Vietnã. Que felicidade poder voltar a enterrar profundamente as suas garras no couro miserável dos Estados Unidos! Era como ser jovem de novo.

Assim foi que certo dia, algumas semanas antes da invasão do Iraque, recebi um e-mail falando-me de algo chamado a campanha do “Olá, América!” Fora lançada em Oslo a 6 de janeiro e estava “agora a espalhar-se por todo o mundo” para “bombardear o mundo com uma mensagem de apoio a todos os americanos amantes da paz”.

Pediam-me para assinar a mensagem apensa e reenviá-la para os meus amigos e contatos”, bem como para o presidente Bush, o vice-presidente Cheney e várias agências noticiosas dos Estados Unidos, cujos endereços de e-mail eram fornecidos. E qual era a mensagem? Esta:

Olá, América!

Os Estados Unidos estão à beira da guerra. Um dirigente agressivo e imprevisível está a espalhar o medo e a insegurança. Chama-se George W. Bush.

O Sr. Bush possui enormes arsenais de armas de destruição maciça.

Afirma que tem o direito de as usar.

Nunca foi eleito por uma maioria dos seus compatriotas.

(32 por cento dos americanos adultos votaram em Bush. Obteve menos 539 989 votos do que o seu adversário Al Gore.)

Lidera um regime onde ele próprio – e uma elite rica -goza de enorme riqueza e privilégios crescentes, enquanto milhões vivem na pobreza e no desespero.

Os membros das minorias étnicas são oprimidos e humilhados.

O seu país está no topo da lista mundial no que diz respeito a não assinar tratados de direitos humanos.

Agradecemos-te, América!

Sabemos que a maioria dos americanos desejam paz, prosperidade e justiça para todos.

Vocês são boas pessoas, como a maioria das pessoas em países como o Iraque, Israel, a Palestina, a Coreia, a Ucrânia, a Austrália, a Noruega, o México, o Canadá, a Alemanha, a Indonésia, o Brasil, a Índia, a Bolívia, o Irão, o Uganda, Portugal e outros.

Agradecemos-vos por nos terem dado Abraham Lincoln, Bessie Smith, Elvis Presley, Franklin D. Roosevelt, Hank Williams, Martin Luther King Jr., Toni Morrison, Jimi Hendrix, Jesse Owens, Woody Allen, Miles Davis, Ernest Hemingway, Hellen Keller, Madonna, John Steinbeck, Jimmy Carter, Julia Roberts, Muhammad Ali e muitos mais.

Se pudermos fazer alguma coisa para vos ajudar a livrarem-se de George W. Bush antes que ele dê cabo da vossa reputação e destrua o planeta inteiro, por favor, digam-nos!

Que obra-prima de ingênuo erro de cálculo! Embora os autores pretendessem manifestamente atrair os americanos para a causa antiguerra, a sua extrema condescendência e a audácia com que pressupunham dar lições aos americanos sobre a história, a economia e a política dos Estados Unidos parecia talhada de propósito para os antagonizar.

A oferta para ajudar a “livrarem-se” de Bush representava um toque sombrio: também nos “tinham libertado” de anteriores presidentes (Lincoln, Garfield, McKinley, Kennedy).

Além disso, se os autores do documento estivessem a falar a sério ao listarem as contribuições dos Estados Unidos, por que não tinham mencionado – junto com Lincoln e Elvis – as invenções e descobertas, como, por exemplo, o ADN, a anestesia, os aspiradores, os aviões, as calculadoras, o cinema, os computadores, os corações artificiais, os discos compactos, os elevadores, a espectroscopia de massas, o fonógrafo, os fornos elétricos, os fornos micro-ondas, a fotografia, os helicópteros, a internet, a luz elétrica, as máquinas de costura, as máquinas de lavar, os microprocessadores, o nylon, os pacemakers, os quasares, o registro de som, a ressonância magnética, o telefone, a televisão, os transístores, e as vacinas da poliomielite, sarampo e meningite – só para começar?

Se estavam a enumerar a dívida especial da Noruega para com os Estados Unidos, por que não reconhecer a libertação dos nazis e o meio século de proteção contra a agressão soviética?

Seria a campanha “Olá, América!” obra de jovens mal-informados a brincarem aos radicais? Nada disso. A longa lista de assinantes incluía vários nomes noruegueses conhecidos: escritores, jornalistas, acadêmicos, membros do parlamento. Do primeiro ao último nome, este documento infantil era produto do establishment norueguês.

E não era propriamente um fato isolado. A apenas alguns metros da minha porta, nos degraus de um edifício devoluto, via-se uma variante a três dimensões do “Olá, América!”: uma profusão de velas, fotografias, cartazes e poemas transmitindo a mensagem de que a paz era boa, a guerra era má e os Estados Unidos não eram melhores do que o Iraque de Saddam.

Num cartaz lia-se: “Babilônia contra Babilônia: não tome partido!” Alunos de escola tinham desenhado figuras de aviões a largarem bombas sobre mulheres e crianças. A pele das vítimas fora devidamente pintada de castanho; os aviões estavam rotulados “Eua”. Ao que parecia, os professores dos miúdos tinham tido todo o gosto em aconselhá-los a respeito de tais detalhes.

Acontecia que aquela exposição na esquina da rua ficava em frente da paragem onde eu apanhava regularmente o autocarro para o centro. Lá dentro podia ler um anúncio do Dagsavisen escrito pelo editor das notícias estrangeiras, Erik Sagflaat, e intitulado “Entre partidários de Bush e de Saddam”:

Não é fácil saber em quem acreditar neste mundo de partidários de Bush e de Saddam, onde a verdade está à venda e os amigos mal se distinguem dos inimigos. O meu trabalho é descobrir as ligações e as histórias que se encontram atrás, fora e para lá das câmeras de televisão.

Logo que o autocarro chegava ao centro de Oslo, havia boas hipóteses de me deparar com uma marcha antiguerra. Pareciam estar por todo o lado, naquele inverno. Nem os participantes eram simplesmente antiguerra. Transportavam cartazes atacando os Estados Unidos por tudo e mais alguma coisa, desde o capitalismo implacável à pena de morte.

Transportavam placares onde uma estrela de David e uma suástica estavam desenhadas lado a lado com um sinal de igual entre ambas.

Transportavam faixas vermelhas com foices e martelos.

Transportavam bandeiras palestinas, bandeiras iraquianas e retratos heroicos de Arafat.

Nestas multidões, vi rostos conhecidos da televisão norueguesa: entertainers, políticos, jornalistas.

Quanto mais a coisa continuava, mais indignado eu me sentia. Nos jornais e revistas políticas americanos, lia debates fortes e sérios sobre a política dos Estados Unidos no Médio Oriente. Lia também relatos sobre as fábricas de tortura de Saddam, sobre as suas prisões cheias de crianças, as suas valas comuns. Nos jornais europeus que lia, não encontrava qualquer menção destes assuntos.

Em 2004, depois de surgir a história dos maus tratos aos prisioneiros na prisão de Abu Ghraib em Bagdá, os jornais e noticiários televisivos da Europa Ocidental mostraram as mesmas três ou quatro imagens dia após dia durante semanas. Eu me sentia enojado com as imagens, e chocado pelo facto de uns poucos tolos ignorantes (fosse a que nível fosse) terem conseguido arruinar a reputação dos soldados americanos; contudo, repugnava-me também o cinismo dos medias europeus.

Tinham correspondentes no Iraque que viam certamente os soldados americanos a fazerem um bom trabalho; mas nunca o relatavam, nem mostravam qualquer fotografia sobre nada disso. Os media americanos, embora frequentemente menosprezassem as boas notícias sobre o Iraque, pelo menos passavam de vez em quando alguma história que mostrava os militares americanos a uma luz favorável: por exemplo, a 19 de junho de 2005, o noticiário CBS Evening News terminou com uma reportagem sobre um soldado de Wisconsin que adotara um menino iraquiano com paralisia cerebral

Nunca vi nenhuma reportagem em nenhum meio de comunicação europeu que retratasse os soldados americanos de forma tão compreensiva, tão humana.

A cobertura jornalística é consistente e flagrantemente desequilibrada. Para os consumidores dos media europeus, Abu Ghraib é a presença dos Estados Unidos no Iraque; Guantánamo é a guerra contra o terror. Não se engane: quaisquer maus tratos a prisioneiros são uma desonra para os valores americanos. 

Mas a fixação dos media da Europa Ocidental com Guantánamo e Abu Ghraib é pura hipocrisia: indiferentes a violações de direitos humanos muito mais graves noutros locais do mundo, insistem nas infrações praticadas pelos Estados Unidos por pura má vontade.

O escritor francês Philippe Roger disse do seu país que “não paramos de criar uma América mitológica para evitar questionarmo-nos sobre os nossos verdadeiros problemas. E são problemas com que os americanos não têm muito a ver”. Isto aplica-se ao antiamericanismo europeu em geral: o seu principal objetivo é desviar a atenção dos verdadeiros problemas.

No final das contas, se as pessoas se conseguirem convencer de que os Estados Unidos são genuinamente a maior ameaça à paz mundial, podem sentir-se muito felizes e tranquilas – pois que mundo maravilhoso seria se os Estados Unidos fossem a maior ameaça.

As primeiras semanas e meses depois do 11 de Setembro fizeram aumentar a minha sensação do conflito subjacente entre as percepções americanas e europeias da realidade, especialmente no que diz respeito aos nossos interesses geopolíticos comuns.

Em vez de se considerarem parte da civilização ocidental, demasiados europeus consideravam que os seus interesses divergiam vincadamente dos nossos, uma situação que complicaria seriamente a prossecução eficaz da guerra contra o terror.

Em muitos sentidos, era simplesmente um regresso à dinâmica da Guerra Fria que eu esperara- em vão, como se viu – que tivesse sido abandonada no monte de cinzas da história. 

Título e Texto: Bruce Bawer, in “Enquanto a Europa dormia”, páginas 119 a 132 
Digitação: JP, 9-11-2021

1 Em 2005, o “investigador da paz”, Stein Tonnesson lastimou o “rosto de Jano” do governo norueguês, “uma face virada para os Estados Unidos e a outra para a Noruega”.

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