Esses burocratas não eleitos querem não só
proteger seus privilégios, mas governar os demais, mesmo que ignorando suas
próprias escolhas democráticas
Rodrigo Constantino
Na primeira fala de Sergio Moro como político, na ocasião de sua filiação ao Podemos, o ex-juiz defendeu metas bem ambiciosas sem entrar em detalhes sobre como executá-las. A premissa que parece nortear o projeto de governo de Moro é a de um Estado quase onipotente, que deve cuidar de tudo e todos, dependendo apenas de alguém honesto para tornar tal sonho realidade. Como magistrado desde sempre, Moro não escaparia da visão predominante naquilo que se convencionou chamar de Estado administrativo.
Pouco depois, o ministro Dias
Toffoli deu uma declaração bem estranha em evento em Portugal, afirmando que o
Brasil já tem um regime de semipresidencialismo na prática, com o STF no papel
de Poder Moderador, e ainda citou o exemplo da pandemia para ilustrar seu
ponto. O Brasil não realizou nenhum plebiscito para mudar de regime, e, pelo
que consta em nossa Constituição, somos um país presidencialista, com
atribuições claras a cada Poder para criar um mecanismo de freios e
contrapesos, impedindo o abuso de algum deles.
O que os dois casos parecem
ter como denominador comum é uma mentalidade vigente principalmente na elite
tecnocrática que trai certo desprezo pela opinião popular. Nos discursos, todos
defendem a democracia, a soberania nacional, a pluralidade. Mas, na prática,
muitos servidores do Estado alimentam uma crença arrogante de que são ungidos e
precisam guiar as massas mais ignorantes, “empurrar a história” rumo ao
“progresso”.
Isso não vem de hoje. Bismarck
tinha fé semelhante nos burocratas da Prússia, e os democratas americanos
tentam há décadas criar uma casta de especialistas que deveria concentrar mais
poder. Woodrow Wilson e os “progressistas” basearam-se nos exemplos dos
intelectuais tecnocráticos da Revolução Francesa, como Henri de Saint-Simon, ao
defender que o governo poderia ser confiado a uma classe profissional de
funcionários não eleitos, mas “especialistas”, os precursores dos modernos
“tecnocratas”.
Sob essa ótica, o povo seria muito ignorante e emocional para ter autonomia. O crescimento do poder burocrático tem sido assustador, e se serve dessa mentalidade elitista. Em 2019, cerca de 450 agências federais americanas contavam com 2,7 milhões de burocratas. O Federal Register agora numera mais de 175 mil páginas de vários códigos, abrangendo 235 volumes. Seu tamanho aumentava anualmente — até 2017 e os esforços de última hora de Donald Trump na desregulamentação radical e algum enfraquecimento da burocracia.
O
grande denominador comum dessa gente é o desprezo em relação às escolhas
populares
Esse sentimento elitista ficou
ainda mais escancarado durante o governo Trump, pois a elite “progressista” se
recusou a aceitar o resultado das urnas, e desde o começo fez de tudo para
derrubá-lo. Trump prometeu “drenar o pântano” em Washington, declarou guerra ao
“deep state”, e este reagiu de maneira um tanto golpista. Inúmeras
declarações de representantes dessa tecnocracia mostram como esses servidores
de Estado embarcaram numa cruzada política, imbuídos da crença de que estavam
lutando para impedir a destruição da própria democracia e uma suposta ameaça
fascista. Para preservar as instituições, esses tecnocratas esgarçaram as
próprias instituições republicanas.
O caso de maior destaque talvez seja o de James Comey. O ex-diretor do FBI involuntariamente simboliza o tema de maneira irônica em seu livro de memórias, A Higher Loyalty. Comey inadvertidamente publicou a noção hipócrita do “deep state” de que violar leis e protocolos a serviço de suas supostas agendas éticas mais elevadas — neste caso, a oposição ao polêmico presidente Trump — era mais do que justificado. E, de fato, Comey deixou bem claro que não tinha lealdade às funções de seu cargo, mas, sim, ao seu messianismo de eliminar Trump da política. Com essa postura, arrastou a imagem do FBI para a lama.
Ao contrário da crença
popular, o termo “deep state” nunca implicou uma cabala secreta. Muito
menos agora transmite qualquer noção de filiação oficial. Em vez disso, é uma
aliança natural e frouxa daqueles que se consideram guardiões permanentes do
poder, da moralidade e da influência dos Estados Unidos. O Washington Post publicou
um editorial em 2020 cujo título já estampava essa crença, alegando que era
chegada a hora de as elites terem mais voz na escolha do presidente. O grande
denominador comum dessa gente é a desconfiança ou mesmo o desprezo em relação
às escolhas populares.
Robert Nisbet observou há
muito tempo a irônica simbiose entre democracia e burocracia: “Por meio da
democracia, a burocracia tem se expandido constantemente, resultado do número
crescente de funções sociais e econômicas assumidas pelo Estado Democrático.
Mas, quando a burocracia atinge um certo grau de massa e poder, ela se torna
quase automaticamente resistente a qualquer vontade, incluindo a vontade eleita
do povo, que não seja de sua própria autoria”.
Esses burocratas não eleitos
querem não só proteger seus privilégios, mas governar os demais, mesmo que
ignorando suas próprias escolhas democráticas. Ideologia de gênero, mudança
climática, mulheres nas unidades de combate da linha de frente e casamento gay,
entre 2008 e 2020, foram transformados de tópicos de discussão e debate
legítimos em ortodoxias rígidas e politicamente corretas — muitas vezes mais
por reguladores do que legisladores. O poder de legislar vem sendo usurpado do
povo e delegado aos tecnocratas “iluminados”.
As metáforas são abundantes
para o relacionamento entre democracia e burocracia, seja o parasita que
eventualmente corrói seu hospedeiro, o monstro Frankenstein que não pode ser
controlado por seu criador humano ou o computador de ficção científica que se
torna rebelde e devora seu inventor. A necessidade de separar o poder entre
legisladores, executivos e juízes repousava em uma visão pessimista da natureza
humana: os funcionários sempre procurariam consolidar o poder e o fariam sob o
pretexto de servir ao bem público ou a causas nobres.
O establishment americano
usou muito a expressão “adultos na sala” para justificar a obstrução ao governo
do presidente eleito, pois julgava Trump incapaz e perigoso para os “interesses
nacionais”. A ameaça burocrática à cidadania clássica, segundo o historiador
Victor Davis Hanson, é a ascensão de uma aristocracia virtual não eleita ou
oligarquia fraudulenta que exerce o poder de uma maneira que não reflete um
governo consensual. Com Trump, esse risco saltou aos olhos da maioria.
Seus opositores se
autoproclamavam “a resistência”, como se fossem os guardiões da democracia
fingindo que não fora a própria democracia quem colocara o magnata no poder. Os
oponentes do presidente não se autodenominavam a tradicional “oposição leal” ou
mesmo se viam como meros “oponentes”. Em vez disso, eles escolheram
deliberadamente um termo da França ocupada na Segunda Guerra Mundial. Os
combatentes do La Résistance formaram alianças “clandestinas”
em toda a sociedade francesa, especialmente para organizar ataques militares às
forças de ocupação nazistas e seus colaboradores de Vichy. Se a meta é tão
nobre como expulsar nazistas, então vale tudo!
O establishment tem
um papel importante na condução das coisas de Estado, sem dúvida. O staff carrega
conhecimento importante para dar continuidade aos trabalhos durante as trocas
políticas nos comandos. Mas de uma ideia razoável chegamos a um estágio
preocupante, em que esse staff quer mandar em tudo, independentemente de
quem o povo escolha como comandante. Isso é antidemocrático e extremamente
perigoso. Hoje, é impossível ser um verdadeiro defensor da democracia e não
condenar esse abuso de poder de uma tecnocracia cada vez mais autoritária.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista OESTE, nº 87, 19-11-2021
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