domingo, 21 de novembro de 2021

[As danações de Carina] Tintas invisíveis num cotidiano sem talvez

Carina Bratt

NA MINHA CAMINHADA, todos os dias, antes das seis horas, pelo calçadão da avenida onde moro, um pouco adiante do meu prédio, há uma praça. Seria uma peça distinta e aconchegante, por aqui, se nela moradores de rua não se fizessem presentes como um amontoado (a cada minuto mais volumoso) de corpos desfalecidos tornando feia e amundiçada a vista da praia bonita, logo em frente. Lá longe, além da areia branquinha, no distante onde o mar se encontra com o céu, num abraço indizível, um sol magnânimo se agiganta indiferente à fome bárbara destas criaturas que vivem ao sabor sem gosto do relento impiedoso.

Crianças de idade entre cinco e oito anos, me pedem ajuda com dentes faltosos e palavras emudecidas. Um vento ameno, quase imperceptível sopra dando ares de se fazer ridente e formoso. No meu peito, o coração se abre em batidas descompassadas. Por onde passo, seja indo ou vindo, não existem atalhos. A felicidade que carrego, parece despedaçada, lancinada, pungida. Apesar do medonho com o qual me deparo, as benignidades vindas do infinito sorriem para mim. Me questiono, entretanto, onde ficou o passado destes abandonados e sem casa, destes sem ter o que comer e beber, e, pior, sem saberem como será o próximo alvorecer?

Assim como l’uccello non si mostra al vento dietro la montagna, nada me sinaliza como será o porvir destes infelizes vegetando à mercê de uma desgraça anunciada. Apesar do quadro indescritível que se descortina para meu enlevo, de contrapeso, um aperto desprezível e incomodativo me tira do sério. Não sei explicar qual é, ou qual seria o motivo desta mazela avassaladora estar maltratando impiedosamente estes seres humanos jogados como lixo à sorte de uma vida inglória.

Não existisse esta lesão danosa, eu poderia dizer que me sentiria dona do mundo. Às vezes pousa nos meus sonhos uma quimera desconhecida. Noutras, uma solidão pesada e colossal, que considero mil vezes maior que os desvarios que mergulham dentro de meu ser, de modo desordenado. Tudo para tirar do foco o meu agora sem pósteros 'venturos'. Penso, seriamente, que a bala da arma do destino não fere o brio de quem apertou o gatilho... apenas rouba a transitoriedade terrena de uma existência que poderia vir a ser feliz depois.

Entre um passo e outro, tenho a convicção de que morre, aos bocadinhos, a espécie mais apavorante da aniquilação lenta e aturdida e, claro, cada vez mais sentida, em cada morador de rua, em cada piá, sem a direção de um porto seguro. A minha caminhada, pelo calçadão, está perdendo o brilho, o sentido, a razão, a magia, a luminosidade. Num breve desencanto, o sorriso dos pirralhos me assusta. Não vejo, para eles, ainda que espie para bem longe, não atesto sequer um futuro de presságios e boas-novas, ou pelo menos alguma coisa que prometa alvíssaras.

Estanco os meus passos e volto. Uma parte de mim implora à Deus que ilumine estes moradores de rua; outra parte de mim explode em pranto sentido. Me improviso num choro dorido, e me sinto desmoronando por dentro, como se uma doença incurável me dilapidasse as entranhas. O que eu poderia fazer para mudar este agora? Não só mudar, não mais ver, tampouco encontrar necessitados e desvalidos morrendo, inocentes suplicando restos de comidas, dividindo espaços com ratos e baratas, enquanto as horas, dentro do tempo inexorável folheiam, às carreiras, o calendário de uma nova ‘pauperrimidade’ inopiosa.

Meu agora está perdendo o viço, a exuberância, o vigor, a juvenilidade. Tudo foge ligeiro montado num Pégaso veloz. A mancebia dos meus anos, a cada dia, fica mais obsoleta. O meu mundo de agora e o meu chão, em nada se parecem com aqueles dos meus primórdios. Concluo que devo desistir de mim mesma. Amedrontada, vencida, rodeada por pedintes, indigentes, esmoleiros e menores carregando nas costas sacos abarrotados com as extremas carências materiais, deduzo que è con me che resterò nella terra.

Título e Texto: Carina Bratt. De Aracruz, no Espírito Santo. 21-11-2021

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