terça-feira, 23 de novembro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Com intervalos de pouca duração

Aparecido Raimundo de Souza

O MORCEGO MARCEGO
, chefe do clã familiar dos morcegos-vampiros, resolveu fazer um teste em forma de competição com seus cinco filhos, não dando na vista, a finalidade da sua pretensão. O certame seria levado à efeito, baixo dos panos (sem que eles desconfiassem). A ideia do sujeito se dava pelo fato, e, não só pelo fato, mais voltada à curiosidade mórbida em descobrir quem seria capaz de arranjar sangue rápido, em tempo recorde, para a própria perpetuação da espécie. Como andava pra lá de Bagdá, além de velho e cansado, Marcego chamou um a um seus rebentos, em dias alternados da semana, bem ainda em horários preestabelecidos, catou um cronômetro que trazia guardado entre os cacarecos da sua companheira e se pôs em guarda. O primeiro que encabeçaria a lista, coube ao Borcego, de vinte anos. Foi ele, pois, o pródromo albergado à testa, capitaneando a inauguração da prova.
— Meu filho —, disse o prístino Marcego. Se eu morresse hoje, ou a sua mãe, em quanto tempo você conseguiria arranjar sangue ao se pilhar sozinho e com fome?

Borcego não respondeu. Saiu voando, meio desesperado, e, sessenta segundos depois, voltou com a barriguinha e a boca cheias de sangue quente.
— Diz aqui para seu brother onde arranjou toda esta guloseima?
O filho, orgulhoso pelo elogio, mais que depressa passou a mão no ábdito e voou até perto de uma cerca nas imediações de onde moravam. Apontando um determinado ponto, junto à edificação de arame farpado, respondeu à curiosidade do ancestral.
— O senhor está vendo aquele animal ali?
— Você se refere ao belo exemplar puro-sangue pastando tranquilamente?
— Sim, pai.
— Então, foi dele...

Em seguida, na terça-feira, pintou a vez de Mornego, de dezoito. O pai repetiu a mesma pergunta e no passo em que o filho bateu em retirada, acionou o instrumento de precisão. O garotão voltou com a pança estufada e o comedor de lavagem lambuzado, como louvação da sua capacidade de se safar sozinho, quarenta segundos depois. O pai sorriu cheio de alegria e se sentiu realizado pela destreza de seu mocinho. Mandou a interrogação encerrando o bate-papo.
— Onde você arranjou toda esta guloseima?
O miúdo, rindo de uma orelha à outra, pediu ao pai que o acompanhasse até uma chácara próxima de onde moravam. Ao se verem no local, Mornego se abriu igual mala velha.
— Está vendo aquela égua estirada ao lado da camionete?
— Sim.
— Tomei dela, na raça. Caí matando, com força.
— Muito bem — disse o longevo com elevada satisfação nos olhos. Você está de parabéns.

Na sequência, veio o Morguego, de quinze. Como os demais, ao se prostrar na frente do genitor, o Desmodus rotundus reiterou a pergunta e, assim que o filho saiu de perto de suas asas, voltou a acionar o medidor digital. Em menos de trinta segundos, o frangote voltou sorridente e, claro, com o bucho cheio e as presas com visíveis sinais de que a refeição procurada fora feita de forma ligeira e especial. A mesmíssima pergunta se amiudou também para este membro da prole. Ao que Morguego, em atenção, levou o pai ao local de onde se abastecera do delicioso e precioso líquido responsável pela sua sobrevivência.
— Pai, está vendo aquele sujeito com a cara do Lula e brinquinhos nas orelhas?
— Sim.
— Dei o troco. Roubei dele...
— Parabéns meu filho. Estou contente com a sua atuação.

Na quinta-feira, o quarto filho, ou seja, o Morcenego, gêmeo com Morguego, não deixou a desejar. O anoso, assim que o viu com os pés dentro da caverna, mandou o desafio, na lata, e, quando ele desapareceu, disparou o relógio do tempo. Foram exatos vinte segundos. Curioso e meio apatetado, pior, não acreditando em tamanha agilidade, pediu ao belo que o levasse até onde fizera o seu ágape com tanta desteridade e desempenho.
— Pai, por favor, olhe para o seu lado esquerdo.
— Estou olhando...
— O que exatamente o senhor esta vendo?
— Um burro.
— Perfeito! E...?
—... Tirei dele...

Finalmente, no sábado, quase final da tarde, se abancou o derradeiro. Morcegueiro Junior, o caçula, nove anos. Vestido com a capa e a máscara do Batman, o Homem Morcego, Morcegueiro adentrou a rusticidade da gruta no maior estardalhaço. Antes que ensaiasse pedir a benção do avelhantado, o hematófago se adiantou e mandou a mesma inquirição que fizera aos quatro anteriores. Quando este deixou o lar paterno e reapareceu, exatos dois segundos depois, trazia o corpo inteiro todo respingado do precioso líquido vermelho salvador da pátria. O coroa, num primeiro momento, atônito e sem esconder a alacridade e o entusiasmo que sentia, se achou o morcego-vampiro mais feliz do mundo. Seus filhos viveriam e sobreviveriam sem a sua presença e a da mãe.
— Conte aqui para seu arcaico pai. Onde a minha raspa de tacho forrageou toda esta abundância de sangue num tempo recorde?
O piá não se fez de rogado. Sem imprimir delongas, conduziu o vetusto até a entrada da cidade, onde um esqueleto de quase trinta andares parecia cortar o espaço em direção ao céu.
— Papito, está olhando para este edifício?
— Claro, meu príncipe. Lindo prédio. O que tem ele?
— Juro ao senhor, por tudo quanto é sagrado. EU NÃO VI...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 23-11-2021

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