Bruna Frascolla
Cerca de meio milênio antes da era cristã, Esopo já escrevia uma fábula para ensinar os seus conterrâneos a distinguir entre os que fazem uso da força e os que fazem o uso da razão. O cordeirinho racional bebia água no mesmo rio que o lobo, também racional. Este estava mais próximo da nascente. Ainda assim, dizia ao cordeirinho que ele estava turvando a sua água. Se o cordeiro racional não fosse cordeiro, e tivesse alguma malícia ou simples bom-senso, consideraria que o lobo é um lobo, antes de ser um animal racional, e que ele próprio, por mais que se considere um animal digno, é ao mesmo tempo uma presa apetitosa. Se um lobo está procurando conflito com você, cordeiro, corra!
Mas o cordeirinho acreditava
que tudo era razão e diálogo, e que poderia solucionar o problema convencendo o
lobo de que o seu argumento não era razoável. O cordeiro argumenta que, devido
ao curso do rio, é impossível que ele esteja turvando a água do lobo. É um
argumento de uma evidência cristalina. Tão cristalina, mas tão cristalina, que
é impossível que o lobo não soubesse de antemão. Após discutirem, o lobo engole
o cordeiro.
Moral da história: não é
razoável confiar sempre no poder da razão, já que este não é o único poder do
mundo.
Irracionalidade evidente em
2020
Logo no começo da pandemia, a
Europa começou a fechar parques e a trancar as pessoas em casa. Não obstante,
apinhar-se nos metrôs para ir trabalhar era permitido. No caso da França, o
cantor HK fez uma série de versos e canções contra as medidas sanitárias irracionais.
Uma, em particular, “Danser Encore”, foi traduzida para várias línguas
europeias e se transformou numa espécie de hino dos protestos. (Escrevi sobre
isto quando tomei conhecimento, já que foi abafado.)
No território nacional,
lembro-me do primeiro susto que tomei com a irracionalidade das medidas. Foi
quando a prefeitura de São Paulo resolveu restringir a frota de ônibus. Ora
bolas, caçarolas: como o único exemplo de lockdown no Brasil equiparável ao da
Europa foi no município de Araraquara, estava claro, lógico, evidente, que o
grosso da população de São Paulo continuaria saindo às ruas para trabalhar. E
como se sabia que o vírus era transmissível por via respiratória, era evidente,
lógico, claro, que apinhar as pessoas em vagões mais apertados aumentava o
contágio. Dada a evidência, eu não era nenhum gênio ao notar isso. A própria
notícia amiúde vinha acompanhada de críticas. E não obstante a prefeitura de
São Paulo ia sendo imitada pelas prefeituras das capitais Brasil afora.
Depois disso, veio a redução de horários de funcionamento de lojas e do serviço público. Cansei de ouvir gente reclamando que as medidas não faziam sentido, porque as pessoas passavam a se aglutinar nas lojas e a se apinhar nas filas do serviço público. As autoridades não se empenhavam em dar nenhuma resposta satisfatória. No máximo, os psolistas do funcionalismo diziam que a culpa da redução do trabalho era de Bolsonaro, que não os tinha vacinado. Mas para a redução de transporte público, necas. Repetiam que as pessoas iam deixar de sair de casa, mesmo que sabendo que é mentira. São como o lobo da fábula.
Por fim, o cúmulo do absurdo,
os shoppings foram reabertos antes dos parques e praças. No ano passado, eu
quis mostrar o Campo Grande para a minha tia carioca, mas estava fechado. Já no
shopping se podia entrar. Alguém quer dizer que há racionalidade nisso? É como
se os lobos repetissem para nós, desde a Europa até Salvador, dando um balão em
São Paulo: Tu estás turvando a minha água, ó cordeirinho! Fique longe das
praças, evite o ar livre e apinhe-se no transporte público lotado para não
pegar covid!
Irracionalidade evidente em
2021
Os lobos falaram, e de fato
ficamos com as nossas liberdades restritas. Hoje estamos menos livres do que em
2019, mas o retorno parcial à normalidade fez com que muitos se sentissem
aliviados. Aí lembra uma outra fábula, moderna, de autoria desconhecida. O
homem vai ao médico contando que quer se matar e o doutor receita um bode na
sala. A cada ida ao médico, é prescrito um bode na sala. A vida do homem piora,
com os bodes defecando em tudo, arrancando a dentadas nacos do estofado,
fazendo bééé. Até que o médico passa a recomendar a retirada gradual de bodes.
No fim, sem bodes, o homem acha a vida uma maravilha e se considera curado.
A moral original da fábula é
que devemos dar valor ao que temos. Mas ela revela uma psicologia dos bodes que
é útil para entendermos a nossa situação atual. Em vez de médico, bem podemos
ter um lobo da fábula de Esopo. E em vez de ter em vista a cura, tem em vista a
restrição gradual das liberdades. Assim, é possível que o governo vá nos
impondo um bode na sala, depois dois bodes na sala, e quando ele tira um,
ficamos felizes por ter na sala um bode em vez de dois. E aí ele bota de novo o
segundo bode, mais o terceiro, e depois tira só o terceiro. E assim ficamos
felizes por ter apenas dois bodes na sala, em vez de três. A coisa pode seguir
em progressão rumo ao infinito. Ficaremos aliviados por ter n bodes na sala, em
vez de n + 1.
A novidade de 2021 foi o
passaporte sanitário. A vacina impede o contágio? Não. A vacina traz riscos? A
própria bula diz que sim. Matou Bruno Graf, e o governo de Santa Catarina só
reconheceu isso porque a mãe dele reuniu firmeza de caráter e condições
financeiras para bancar exames caros. (Dizem que o caso de Bruno Graf é
raríssimo, como se a mãe dele, Arlene Graf, não fosse uma mulher raríssima. Se
o cinismo e a covardia não estivessem em alta, o Brasil não pararia de se
perguntar: mas não era de interesse público a apuração das mortes causadas por
vacina? A batalha de Arlene Graf não é uma evidência de que corremos um risco
inaceitável?) A conclusão lógica, evidente e clara é que o Estado vai obrigar
os Brunos Grafs a pagarem com a vida por uma segurança que não será entregue.
Além disso, ignoram-se as
evidências contundentes de que a imunidade adquirida com a covid é superior à
artificial de que ora dispomos, e que a vacinação dos imunizados pode ser
prejudicial à sua saúde. É uma irracionalidade evidente obrigar os milhões de
brasileiros que sobreviveram à covid a tomarem essas vacinas compradas pelo
Estado.
Irracionalidade evidente em
2022
O governador do meu estado
baixou um decreto segundo o qual eu não vou poder pegar nem o transporte
intermunicipal alternativo sem um comprovante de vacinação do ConecteSUS, cuja
funcionalidade não sabemos se é muito melhor do que a do aplicativo eleitoral
do PSDB. Para ingressar no SAC, que faz documentos de identidade, é preciso ter
o comprovante também. O cidadão sem cartão pode virar um cão vadio perante o
estado da Bahia. E não digam que é por ser do PT, porque a vacinação aqui
contou com menos adesão da população do que o estado de João Doria, o Herr
Vacina. O que ele não faria, caso a população desobedecesse?
Assim, enquanto o governo me
tira liberdades quotidianas e básicas em nome do combate à covid, libera o
carnaval de 2022. O Rio, cujo carnaval também é grande, também está perseguindo
seus cidadãos e liberando o carnaval de 2022. Alguém acredita que isso faça
algum sentido?
Não faz. São uns lobos. Dizer
que passamos covid é só um jeito de dizer que turvamos a água.
Título e Texto: Bruna
Frascolla, Gazeta
do Povo, 26-11-2021, 12h32
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