A impressão é que o sonho de muito jornalista brasileiro é trabalhar num grande Pravda nacional, com redação única e Lula na cadeira de redator-chefe
J. R. Guzzo
Parece destinada em breve ao cemitério, por falência progressiva dos motivos que tinha para manter-se viva, uma das piores ideias que a imprensa brasileira já teve em seus 200 e poucos anos de existência. Com a diminuição dos casos de covid, e o seu desaparecimento das manchetes e do horário nobre da televisão, pode estar caindo em exercício findo, como se diz em português de funcionário público, o “consórcio” dos principais veículos da mídia brasileira para divulgar em conjunto os mesmos números diários sobre mortos na epidemia. Virou uma coisa de religião. Só esses números, segundo os jornalistas, são (ou eram) a verdade, o caminho e a luz. Ficou a cargo do “consórcio”, desde o dia em que foi criado, o direito exclusivo de dizer quantas pessoas tinham morrido na véspera — nenhum outro poderia ser admitido, sob pena de incentivo ao genocídio e sabe lá quanta desgraça ainda pior. Não haveria mais perigo, a partir daí, de que “o Bolsonaro” inventasse números e acabasse, em sua estratégia de “desinformação”, com os objetos de desejo mais intensos que a imprensa brasileira já teve em tempos modernos: o “fique em casa”, a máscara e o uso do álcool em gel.
Durante meses a fio, ou até
mais, era o momento do dia mais empolgante para muito jornalista deste país: a
hora de fechar os mortos da edição com o número sagrado que baixava do
“consórcio”. Quanto mais alto o número, maior a alegria nas redações, secreta ou
sem disfarce. “Yesssss!”, exultava-se intimamente, a cada vez que os
números produzidos pelo “consórcio” batiam recordes — diários, mensais,
quinzenais, nos dias ímpares, nos dias de chuva, nas vésperas de feriados, nos
dias santos e por aí afora. Era sinal, então, que a covid continuava a toda.
Isso, no tumulto mental de muito comunicador, iria enfraquecer o governo
Bolsonaro, apressar o fim do capitalismo e dar um impulso decisivo nas lutas
pela diversidade, por mais terras para os índios e contra o aquecimento global.
Onde foi parar a vontade de
competir e de dar matéria melhor que a do competidor?
Foi um momento de ruptura violenta com a vida inteligente, mas, até aí, tudo mais ou menos bem — são coisas que acontecem e depois, com o passar do tempo, se dissolvem em sua própria mediocridade orgânica. O que chama a atenção no “consórcio de mídia” é a brutalidade do equívoco profissional cometido por quem imaginou e criou essa deformidade. É simples. O consórcio é a própria negação da ideia mais elementar do jornalismo independente: a capacidade, por parte de cada órgão de imprensa, de apurar, escrever e publicar as notícias que julga de interesse para o público, sem consulta aos vizinhos, sem a sua licença e sem a interferência de ninguém. Não deveria ter existido, em nenhuma circunstância — até por uma questão mínima de amor-próprio.
Os editores, nesse episódio,
não apenas levaram os veículos a abrir mão do principal patrimônio que podem
ter: a sua identidade como órgão de fé pública. Nessa condição, espera-se que
um jornalista não renuncie à sua liberdade de publicar o que acha correto para
os leitores, ouvintes ou expectadores — e que assuma a responsabilidade plena
pelo que está publicando. Os criadores do “consórcio” deram, além disso, uma
demonstração de vacilo profissional. Por que pedir ajuda ao concorrente para
publicar uma notícia? Será que a gente não tem competência para apurar as
nossas próprias informações? Onde foi parar a vontade de competir e de dar
matéria melhor que a do competidor? É a vitória do conformismo de rebanho — o
importante é obedecer a ordens, ser igual ao colega, aceitar, colocar “limites”
na liberdade individual, seguir um comando político. Disso não sai nada que
preste. Só um Saara mental — um deserto sem sombra, sem vida e sem alegria.
Não adianta nada, obviamente,
dizer que cada órgão de imprensa tem um representante no “consórcio”. Por que
diabo, então, o representante não entrega ao seu próprio veículo o que está
entregando ao “consórcio”? A partir daí, cada veículo que cuide da sua vida e
trate de fazer mais e melhor que a concorrência. Se é para o sujeito colaborar
com o conjunto e doar a todos os outros membros do “consórcio” a sua
informação, em vez de levá-la ao lugar onde ele próprio trabalha, porque tanto
jornal, rádio ou emissora de televisão assim? Por que quando cai um avião, por
exemplo, não se junta todo mundo para dar o mesmo número de mortos e feridos?
Vidas são vidas, é o que a mídia diz sem parar há quase dois anos. Morto de
desastre de avião seria menos importante, então, que morto de covid? Não faz
nexo. É uma busca inédita, insaciável e irracional pelo coletivo; a impressão é
que o sonho de muito jornalista brasileiro é trabalhar num grande Pravda nacional,
com redação única, Lula na cadeira de redator-chefe e nenhum outro veículo em
circulação.
Seria difícil, tempos
atrás, acreditar que um jornalista poderia se tornar um defensor da proibição
de dar notícia
É a mesma coisa, ou uma ideia
ainda pior, com as “agências de verificação” que se dedicam a verificar aquilo
que os seus donos consideram “notícias falsas”, ou fake news. São
os censores de 2021 — uma criação não da autoridade pública nos regimes de
força, como sempre é o caso nos mecanismos de censura, mas dos próprios
jornalistas. Seria difícil, tempos atrás, acreditar que um jornalista
profissional pudesse se tornar um defensor extremado da proibição de dar
notícia — ou do castigo, inclusive penal, para quem publicar notícias proibidas
pelas “agências”. Mas é isso, exatamente, o que aconteceu. Grupos particulares,
sem identidade jurídica ou fiscal, sem diretores legais ou endereço, deram a si
próprios o direito de dizer o que é verdade e o que é mentira em tudo o que a
mídia publica ou pode publicar. É claro que têm um viés político, e mais claro
ainda que viés é esse: não há uma única agência de fake news fazendo
vigilância sobre notícias falsas contra o governo federal, por exemplo. Todas,
sem exceção, variam da esquerda para a esquerda. “Falso”, naturalmente, é tudo
aquilo que o grupo não quer que seja publicado.
Ao se associarem às “agências
de verificação”, os órgãos de imprensa, mais uma vez, estão entregando a
terceiros uma parte essencial de sua alma: definir sem interferência de ninguém
o que é correto e, portanto, passível de publicação. Um veículo de respeito
está aí para isso: apurar as suas próprias informações, publicar o que
considera fiel aos fatos e assumir a responsabilidade pelo que publicou. “Se
saiu impresso, ou foi ao ar, é porque nós fizemos o nosso trabalho, verificamos
exatamente o que aconteceu e garantimos que isso aqui é verdade. É por esse
motivo que o público paga para ter acesso ao que nós publicamos. É esse o nosso
trabalho. Não é o governo, nem uma empresa, nem uma entidade qualquer, seja
qual for, que estão nos instruindo ou autorizando a dizer isso ou aquilo; somos
nós mesmos.”
Um órgão de imprensa de
verdade não precisa de agência de fake news — faz o seu
trabalho de verificação por conta própria, e o selo de qualidade de suas
informações não tem de ser dado por ninguém, a não ser por ele mesmo. Também
não faz o papel de polícia do conteúdo alheio, e nem terceiriza a própria
credibilidade. Se essa ou aquela notícia não saem, é porque os jornalistas
deste ou daquele veículo constataram que ela não é verdadeira; não é porque a
“agência de verificação” não deixou. Não dá para entregar a outros, para quem
está interessado em fazer jornalismo a sério, a tarefa de apurar nada do que é
publicado. Ou você é responsável por tudo o que publica, ou não é. Não há
meio-termo.
Os jornalistas brasileiros
adoraram o “consórcio” e as “agências”. Não há nada de bom, em nada disso aí,
para leitores, ouvintes e telespectadores.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista OESTE, nº 87, 19-11-2021
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