terça-feira, 23 de novembro de 2021

[Estórias da Aviação] A quadrilha no hangar

José Manuel

O ano era 2006, e a maior parte dos meus contemporâneos no voo já estavam aposentados. A nossa VARIG vinha voando em céus turbulentos já há algum tempo, e naquele 8 de junho estava programado um leilão da venda ou o fatiamento da VARIG, no hangar do SDU.

Nós, aposentados  e, por conseguinte, beneficiários do AERUS, já  vínhamos de um  forte estresse desde 12 de abril, quando nos foi imposto por agência governamental específica de previdência complementar, um "arresto" dos nossos benefícios e a extinção  dos planos 1 e 2 do AERUS.

Eram dias extremamente delicados em nossas vidas e aquele leilão era para nós como uma luz no final do túnel, pois talvez surgisse algo de novo que trouxesse oxigênio e salvasse a VARIG.

Então, como o leilão estava marcado para as 10h da manhã, saímos eu e Irene de casa bem cedo, pois resolvi passar na igreja de São Jorge, no campo de Santana, para orar e pedir forças para todos, naquele dia tão importante. Gosto muito desse Santo e todas as vezes que me sinto angustiado a ele recorro e normalmente tenho os meus pedidos atendidos.

Mas, ao que tudo indica ele sabia que o que iríamos assistir era um circo armado e resolveu se omitir para não estragar a sua fama de protetor dos homens de bem. Por via das dúvidas comprei na capela umas fitinhas com o seu nome, pois sei lá, ele pudesse resolver o contrário.

O Presidente da VARIG nessa época era o Marcelo Bottini, que parecia estar com as melhores intenções de reestruturar a empresa, ou realizar algo decente naquele dia, naquele hangar.

Logo que chegamos, encontrei com o amigo de todos, o querido Dolabela, muito nosso amigo e que gerenciou algumas bases no exterior, sempre ajudando os tripulantes no que fosse.

E aí fiquei sabendo das suas relações profissionais com o Bottini durante sua vida na VARIG. Eram amigos, e se era amigo do Dolabela, era de confiança, assim o senti naquele momento.

"O presidente da Varig, Marcelo Bottini, atribui o agravamento da crise da empresa à falta de sensibilidade do governo. Na sua opinião, falta ao governo ‘enxergar que a Varig é um problema de Estado, da sociedade’. Declarações do presidente Lula de que o governo não iria ajudar uma empresa falida detonaram, em abril, uma crise cujo prejuízo, com a queda nas vendas, é calculado em US$ 50 milhões."

O Bottini estava certo e esse idiota cachaceiro colocou com essa declaração, a última pá de cal na nossa empresa.

Só um estúpido sem noção, poderia dizer algo parecido como essa aberração e concordo plenamente com a declaração do Bottini que a “VARIG ERA UM PROBLEMA DE ESTADO, DA SOCIEDADE."

E digo mais sem medo de exagerar, que a VARIG era tão importante para o Brasil em tudo e por tudo, que a sua estrela devia fazer parte da bandeira junto com a frase Ordem e Progresso, pois foi isso que ela plantou nos seus 83 anos de vida gerando riquezas e formando brasileiros altamente capacitados a nível internacional.

Voltando ao Dolabela, conversamos um pouco, desejei sucesso e lhe entreguei algumas fitinhas de São Jorge para que ele as colocasse no bolso do Bottini, a fim de ajudá-lo a superar os problemas naquele momento. Feito isso, fomos procurar lugar nas centenas de cadeiras espalhadas no hangar. Ficamos mais ou menos no meio, eu sentado na cadeira que dava para o corredor central, a Irene ao meu lado esquerdo e o Fernando Vieira Dutra, que encontramos lá, ao lado da Irene. Chegamos cedo naquele dia e ainda havia muitos lugares vazios. Pelas 11 horas o hangar estava completamente lotado e a fisionomia das pessoas era de um misto de angústia e esperança de que algo pudesse reverter a rota de colisão da nossa empresa. Com o passar do tempo, fui notando que no palco estava se formando um "circo" muito bem montado, mas que os palhaços ali, éramos nós. Dava para ver as mesmas figuras atuando ali no ato da farsa, que depois vimos, confirmamos, naquela famosa foto do assalto à nossa sala da Presidência.

A quadrilha estava toda lá e até chinês tinha, no meio dos ladrões. Enquanto a farsa rolava, eu via que o semblante das pessoas começava a mudar e o meu coração a bater forte pedindo uma atitude. Vi o Amaury Guedes numa das sacadas agitando freneticamente uma bandeira nacional enorme, senti meu coração disparando, vi um 737 taxiando muito perto do hangar, com o piloto quase pendurado na janela, agitando outra bandeira e vi pessoas abandonando o hangar de cabeça baixa e olhos úmidos.

Nessa hora senti que até o São Jorge tinha ido embora e o Bottini estava sozinho naquela cena da traição. Naquele momento, senti que tinha de fazer algo e quando me preparei para impulsionar minhas pernas, dar um pulo da minha cadeira e gritar para que todos voltassem para suas salas, assumissem a empresa, não se deixassem humilhar por ladrões, que a empresa era de todos ali presentes, senti uma mão no meu ombro direito e vi que aquela mão era a do Sérgio Prates. Estava se despedindo, mas senti aquele gesto me dizendo, “não adianta mais!". 

Fiquei petrificado naquela cadeira e essa imagem me corrói a alma até hoje, pois o que fiz sete anos depois com a greve de fome, não consegui fazer naquele momento.

Por quê? É  muito difícil escrever isto e não é a primeira vez, pois já o fiz para a revista virtual Cão  que Fuma, mas a minha memória pede que o faça  quantas vezes sinta vontade, para tentar amenizar na consciência um ato frustrado, que talvez tivesse dado certo e a história poderia ser outra.

Título e Texto: José Manuel – Perdemos a empresa, mas a lição que fica é a de que assim como uma vírgula muda uma frase, uma simples atitude pode mudar o rumo da história. Novembro de 2021

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