José Manuel
O ano era 2006, e a maior
parte dos meus contemporâneos no voo já estavam aposentados. A nossa VARIG
vinha voando em céus turbulentos já há algum tempo, e naquele 8 de junho estava
programado um leilão da venda ou o fatiamento da VARIG, no hangar do SDU.
Nós, aposentados e, por conseguinte, beneficiários do AERUS,
já vínhamos de um forte estresse desde 12
de abril, quando nos foi imposto por agência governamental específica de
previdência complementar, um "arresto" dos nossos benefícios e a
extinção dos planos 1 e 2 do AERUS.
Eram dias extremamente delicados
em nossas vidas e aquele leilão era para nós como uma luz no final do túnel,
pois talvez surgisse algo de novo que trouxesse oxigênio e salvasse a VARIG.
Então, como o leilão estava marcado para as 10h da manhã, saímos eu e Irene de casa bem cedo, pois resolvi passar na igreja de São Jorge, no campo de Santana, para orar e pedir forças para todos, naquele dia tão importante. Gosto muito desse Santo e todas as vezes que me sinto angustiado a ele recorro e normalmente tenho os meus pedidos atendidos.
Mas, ao que tudo indica ele sabia que o que iríamos assistir era um circo armado e resolveu se omitir para não estragar a sua fama de protetor dos homens de bem. Por via das dúvidas comprei na capela umas fitinhas com o seu nome, pois sei lá, ele pudesse resolver o contrário.
O Presidente da VARIG nessa época
era o Marcelo Bottini, que parecia estar com as melhores intenções de
reestruturar a empresa, ou realizar algo decente naquele dia, naquele hangar.
Logo que chegamos, encontrei
com o amigo de todos, o querido Dolabela, muito nosso amigo e que gerenciou
algumas bases no exterior, sempre ajudando os tripulantes no que fosse.
E aí fiquei sabendo das suas relações
profissionais com o Bottini durante sua vida na VARIG. Eram amigos, e se era
amigo do Dolabela, era de confiança, assim o senti naquele momento.
"O presidente da Varig, Marcelo Bottini, atribui o agravamento
da crise da empresa à falta de sensibilidade do governo. Na sua opinião, falta
ao governo ‘enxergar que a Varig é um problema de Estado, da sociedade’.
Declarações do presidente Lula de que o governo não iria ajudar uma empresa
falida detonaram, em abril, uma crise cujo prejuízo, com a queda nas vendas, é
calculado em US$ 50 milhões."
O Bottini estava certo e esse
idiota cachaceiro colocou com essa declaração, a última pá de cal na nossa empresa.
Só um estúpido sem noção, poderia dizer algo parecido como essa aberração e concordo plenamente com a declaração do Bottini que a “VARIG ERA UM PROBLEMA DE ESTADO, DA SOCIEDADE."
E digo mais sem medo de
exagerar, que a VARIG era tão importante para o Brasil em tudo e por tudo, que
a sua estrela devia fazer parte da bandeira junto com a frase Ordem e
Progresso, pois foi isso que ela plantou nos seus 83 anos de vida gerando
riquezas e formando brasileiros altamente capacitados a nível internacional.
Voltando ao Dolabela,
conversamos um pouco, desejei sucesso e lhe entreguei algumas fitinhas de São
Jorge para que ele as colocasse no bolso do Bottini, a fim de ajudá-lo a superar
os problemas naquele momento. Feito isso, fomos procurar lugar nas centenas de
cadeiras espalhadas no hangar. Ficamos mais ou menos no meio, eu sentado na
cadeira que dava para o corredor central, a Irene ao meu lado esquerdo e o
Fernando Vieira Dutra, que encontramos lá, ao lado da Irene. Chegamos cedo
naquele dia e ainda havia muitos lugares vazios. Pelas 11 horas o hangar estava
completamente lotado e a fisionomia das pessoas era de um misto de angústia e
esperança de que algo pudesse reverter a rota de colisão da nossa empresa. Com
o passar do tempo, fui notando que no palco estava se formando um
"circo" muito bem montado, mas que os palhaços ali, éramos nós. Dava para
ver as mesmas figuras atuando ali no ato da farsa, que depois vimos, confirmamos,
naquela famosa foto do assalto à nossa sala da Presidência.
A quadrilha estava toda lá e até
chinês tinha, no meio dos ladrões. Enquanto a farsa rolava, eu via que o
semblante das pessoas começava a mudar e o meu coração a bater forte pedindo
uma atitude. Vi o Amaury Guedes numa das sacadas agitando freneticamente uma
bandeira nacional enorme, senti meu coração disparando, vi um 737 taxiando
muito perto do hangar, com o piloto quase pendurado na janela, agitando outra bandeira
e vi pessoas abandonando o hangar de cabeça baixa e olhos úmidos.
Nessa hora senti que até o São Jorge tinha ido embora e o Bottini estava sozinho naquela cena da traição. Naquele momento, senti que tinha de fazer algo e quando me preparei para impulsionar minhas pernas, dar um pulo da minha cadeira e gritar para que todos voltassem para suas salas, assumissem a empresa, não se deixassem humilhar por ladrões, que a empresa era de todos ali presentes, senti uma mão no meu ombro direito e vi que aquela mão era a do Sérgio Prates. Estava se despedindo, mas senti aquele gesto me dizendo, “não adianta mais!".
Fiquei petrificado naquela
cadeira e essa imagem me corrói a alma até hoje, pois o que fiz sete anos
depois com a greve de fome, não consegui fazer naquele momento.
Por quê? É muito difícil escrever isto e não é a
primeira vez, pois já o fiz para a revista virtual Cão que Fuma, mas a minha memória pede que o
faça quantas vezes sinta vontade, para
tentar amenizar na consciência um ato frustrado, que talvez tivesse dado certo
e a história poderia ser outra.
Título e Texto: José Manuel
– Perdemos a empresa, mas a lição que fica é a de que assim como uma vírgula
muda uma frase, uma simples atitude pode mudar o rumo da história. Novembro de
2021
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