sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Lula inventou o impostour

A viagem pela Europa do ex-presidente foi uma sucessão de encontros com personagens da série B e discursos delirantes

Augusto Nunes

Que Datafolha, que nada. A única fórmula confiável para descobrir-se como está no retrato algum candidato é o Teste da Paulista. No dia e na hora escolhidos por ele próprio, e ignorados pelo resto do mundo, o alvo da avaliação aparece sozinho numa esquina e começa a caminhar pela principal avenida da maior cidade do país. A reação física da plateia ao identificar a figura, a contagem em decibéis de apupos ou aplausos e a distância que o candidato conseguir percorrer sem gritar por socorro dirão o que o povo acha do candidato. É ótimo, bom, regular, ruim ou péssimo? Tem chances de vencer a próxima eleição ou é melhor aposentar-se enquanto goza de boa saúde? Esse método tão singelo quanto infalível ocorreu-me em 1989 e nasceu com o nome de Teste do Viaduto do Chá. Fernando Collor foi o único que aceitou a sugestão. Nas eleições seguintes, nenhum candidato respondeu ao convite. Agora, Jair Bolsonaro já avisou que topa. Lula, como sempre, faz de conta que não é com ele.

Caso fosse submetido ao Teste da Paulista, como se sairia o homem que o PT promoveu a maior líder popular surgido no País do Carnaval desde a chegada das primeiras caravelas? Lula não conversa com jornalistas independentes desde novembro de 2005, quando protagonizou um fiasco de bom tamanho no programa Roda Viva, em que foi interpelado por alguns entrevistadores sobre a história muito mal contada do escandaloso Mensalão. Ele passou a discursar apenas para plateias amestradas em julho de 2007, depois que a lendária vaia do Maracanã o impediu de fazer o discurso de abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio. (Deveria ter dito, como Nelson Rodrigues, que o Maracanã vaia até minuto de silêncio. Aturdido, preferiu imaginar que tudo fora orquestrado pelo prefeito César Maia.) E deixou de dar as caras na rua sem esquema de segurança desde a devassa, consumada pela Operação Lava Jato, do colosso de bandalheiras que o transformou no primeiro presidente da República condenado em duas instâncias pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Descrito pela imprensa velha, o giro pela Europa do candidato a uma terceira temporada no Planalto informa que o país que esquece a cada quinze anos o que ocorreu nos quinze anos anteriores já esqueceu tudo isso. Não há motivos, portanto, para a vida de ermitão que o mantém enfurnado no apartamento em São Bernardo, ou escondido no Instituto Lula, ou cochichando com devotos em hotéis de Brasília. Quem leu as primeiras páginas de jornais agonizantes pode acreditar que a viagem internacional do ex-presidente foi um sucesso. Recepcionado como estadista por governantes de fina linhagem, todos democraticamente eleitos, Lula teria escancarado o isolamento do atual chefe de governo, obrigado a conformar-se com audiências concedidas por déspotas de filme de horror na visita aos Emirados Árabes. Haja cinismo, constata quem examina a agenda de Lula e sua comitiva, formada pela companheira Janja, pelo senador Humberto Costa (codinome Drácula na lista da Odebrecht), pelo ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia (codinome Grisalho), pelo ex-ministro Aloizio Mercadante (codinome Aracaju) e pelo ex-chanceler Celso Amorim, um dos parteiros da política externa da canalhice. Ao lado do quinteto, e com a indispensável contribuição do jornalismo de cócoras, o farsante patológico acabou de inventar o impostour

A excursão que começou na Alemanha registrou na Bélgica a mais vistosa tapeação. LULA APLAUDIDO DE PÉ NO PARLAMENTO EUROPEU, mentiram em coro as primeiras páginas. Se assassinato da verdade desse cadeia, os editores estariam dividindo uma cela por noticiário fraudulento. Na escala em Bruxelas, o viajante desempregado foi aplaudido, sim. E de pé, é verdade. Mas não pelo Parlamento Europeu, e sim por integrantes de uma certa Conferência de Alto Nível da América Latina, que promoveu na sede do Parlamento Europeu um encontro denominado “Juntos durante a crise para uma nova agenda progressista”. Mais de 95% da agenda foi consumida em jogar conversa fora com personagens da série B. “Dia intenso de muito diálogo”, tuitou em Paris. “Me despedi da França com um reencontro com meu querido companheiro Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa.” Os únicos chefes de governo em exercício que o receberam foram o francês Emmanuel Macron, sempre disposto a confraternizar com qualquer transeunte que grite “Fora, Bolsonaro” ao passar diante do Champs Élysées, e o companheiro socialista Pedro Sánchez, primeiro-ministro da Espanha. 

Esses encontros invariavelmente precederam discurseiras delirantes. Numa delas, Lula explicou que reivindica um terceiro inquilinato no Palácio da Alvorada para acabar com a fome que até agora jurava ter erradicado em 2007, no segundo mandato, quando enxergou na descoberta do pré-sal a iminente nomeação do Brasil para a presidência de honra da OPEP. Noutro palavrório, garantiu que sempre manteve uma relação de “profundo respeito” com o ex-governador tucano Geraldo Alckmin, que qualificou de “corrupto” na campanha eleitoral de 2006. O ofendido revidou com a instalação de Lula no comando supremo da quadrilha do Mensalão. Felizes com o sucesso imaginário do giro, seguidores da seita que tem num larápio condenado seu único deus resolveram berrar que, enquanto isso, Bolsonaro só visitava ditadores. Má ideia, mostrou o troco imediato: adversários do inventor do impostour evocaram algumas das incontáveis demonstrações de admiração, simpatia, amizade incondicional ou amor profundo que homenagearam genocidas de verdade.

Da esquerda para a direita, começando por cima: ao lado de Yasser Arafat, Muammar Kadafi, Bashar al-Assad, Teodoro Obiang, Nicolás Maduro, Mahmoud Ahmadinejad, Hugo Chávez, Cristina Kirchner, e Evo Morales

Depois de uma visita ao Gabão, por exemplo, o palanque ambulante informou que circulara pelo país africano para aprender como se faz para desfrutar do poder por 37 anos consecutivos — e ainda por cima candidatar-se a outra reeleição. Numa reunião de governantes africanos, Lula caprichou na melosa saudação ao tirano líbio Muammar Kadafi: “Meu amigo, meu irmão, meu líder”. Naqueles tempos, o Datafolha e o Ibope atribuíam ao presidente índices de aprovação que ameaçavam chegar a 100% (ou 103%, se a margem de erro oscilasse para cima). Excitado com as façanhas sucessivas, Lula considerou-se capaz de pacificar o Oriente Médio e reaproximar dos Estados Unidos o Irã dos aiatolás atômicos. De lá para cá, as coisas mudaram. Confrontado com a ladroagem do Petrolão, por exemplo, Barack Obama rebaixou O Cara a delinquente comum. E mesmo os institutos de pesquisa andam evitando incursões pela estratosfera.

Pensando bem, Lula prova que não perdeu de todo o juízo ao rejeitar o Teste da Paulista. É improvável que consiga caminhar cinco metros sem começar a ouvir a reprise miniaturizada da vaia do Maracanã.

Título e Texto: Augusto Nunes, revista OESTE, nº 87, 19-11-2021

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