domingo, 28 de novembro de 2021

[As danações de Carina] Receber alguém em nossa casa é, sobretudo, uma arte antiga

Carina Bratt

NOS TEMPOS das vacas gordas, a gente recebia as pessoas em nossa casa como se a coisa fosse corriqueira e a mais natural do mundo. Lembro de minha mãe e de meu pai. Mamãe amava essas reuniões, juntando, nos domingos, na nossa sala enorme, os amigos do quartel (meu pai era militar, já falei disso em outros textos). Hoje em dia, em vista da agitação desenfreada e da pandemia galopante, o convívio entre os amigos mais próximos ou chegados ficou relegado a segundo plano.

Ainda assim, apesar dos pesares, vez ou outra, é comum recebermos de alguém este convite: ‘venha me visitar. A casa é sua!’. Quanto à responsabilidade, entretanto, que se assume, ao se fazer tal convite — na maioria das vezes a ‘simples cortesia’ — poucos são os que refletem, verdadeiramente, a ideia original ou o propósito. Vamos supor que você, minha amiga e leitora, ligue para alguém e faça um convite de tal natureza. A pergunta é simples e direta: você estará em condições de permitir que a sua convidada se sinta como se na própria casa dela estivesse? OK! Mas como?

A explicação é fácil. Basta sabermos ‘como receber’. A principal exigência da arte de recepcionar é demonstrar satisfação à chegada da criatura convidada. Todas as atenções devem e necessitam estarem voltadas para ela. Durante o tempo da sua permanência, ao nosso lado, não devemos ‘aproveitar, sob hipótese nenhuma, para fazermos algum serviço durante o transcorrer da conversa’, como no mesmo pé, não olharmos com insistência constante para o relógio, ou no pior dos desaforos, usarmos uma daquelas expressões infames como esta, por exemplo ’Meu Deus, como o tempo passa...!’.

Os assuntos da palestra carecem e necessitam ser sempre os abordados pela convidada. Nesse momento, em nosso lar, ela é a estrela. A homenageada. Não só devemos fazer o possível, como, igualmente, o impossível, para não nos desviarmos deles. No mesmo trilho, deixarmos de lado as contradições nesse ou naquele ponto. Nossa visão (ou nossos pontos de vistas) de qualquer que venha a ser o tema em foco, se faz necessário o respeito à humildade, o saber ouvir em silêncio a ilustre visita, para que ela não se frustre ou não vá embora constrangida.

No transcorrer do encontro, cai bem um serviço de informalidade, tipo um chá com biscoitos sortidos, um café com pedaços de bolo ou um suco. Enfim, nada que extrapole o chamado ‘lanche rápido e rasteiro’. Mamãe incluía uma tigela de torradas à mesa, com geleia de pêssegos, levando em consideração que algumas amigas delas e de papai não dispensavam uma chávena com a bebida quentinha e as deliciosas torradas feitas na hora.

Se a sua amiga preferir refrigerantes, um drinque rápido, ou uma cervejinha gelada (o que hoje em dia é mais comum), é de bom alvitre a necessidade antecipada de uma variedade, levando em conta, sempre, o infortúnio do acaso, ou seja, para umas esta faz mal, e, para outras, aquela marca é demasiadamente forte. Se o convite for direcionado para um almoço, ou um jantar, tenham em mente que as responsabilidades triplicam e se tornam maiores.

Para estas ocasiões, a lógica antiga ainda prevalece: sinaliza que se convide parentes, ou então amigas muito íntimas. Fora desse padrão, a coisa tende a descambar, ou desarmonizar, sair do controle. Em resumo, estas são, amigas, numa rápida lançada de vistas, as bases principais da magia de receber convidados em nossa casa, seja num sábado, domingo ou feriado. Tenham em vislumbre uma observação importantíssima. Muita gente aglomerada num espaço restrito de apartamento ou encurtado de quitinete, há que se atinar para os pequenos ingênuos e corriqueiros esquecimentos.

Ao formalizar um convite, não o faça desleixadamente. Deixe claro, de modo antecipado, o ‘venha um dia me visitar. A casa é sua’. Uma embrulhada de infindáveis perigos iminentes nos expomos ao soltarmos um impensado ‘a casa é sua’. Tem gente (as amigas mais chegadas adoram fazer esse tipo de coisa, aliás, virou rotina) que não se manca e traz, de contrapeso, duas ou mais pessoas a tiracolo, cabeças estranhas que não estavam apontadas na sua lista original. Passado o alvoroço do simpático convite, e com todas fora da sua visão, se torna, ‘a depois’, decepcionante e triste, a ‘sua casa’ para não se sentir, verdadeiramente à vontade, num chão que é, o tempo inteiro, SOMENTE SEU.

Título e Texto: Carina Bratt. De Ribeirão Preto, interior de São Paulo. 28-11-2021 

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