Na estrutura de instituições em crise no Brasil há uma situação paradoxal: alguns ministros não são ministros
Deonísio da Silva
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF |
Ao chegar em casa, ele teria
ouvido um barulho estranho no quintal. Não se especifica se em sua casa do Rio
ou na de Petrópolis. Ao verificar, constatou que um ladrão tentava levar seus
patos de criação. Ruy Barbosa surpreendeu o larápio quando este ia pular o
muro, já com os patos a tiracolo, e vazou a ordem em juridiquês castiço,
objetivando impedir o furto:
– Oh, bucéfalo anácrono! Não o
interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e
sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos
à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para
zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com
minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto
que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, teria
ficado em dúvida e perguntou: “- Dotô, eu levo ou deixo os pato?”
O juridiquês
Debochemos do juridiquês, mas
não crucifiquemos o STF. Mas. Esta adversativa e suas variantes como, porém,
todavia, contudo e não obstante infestam quaisquer sentenças ou despachos,
todas louvando e às vezes fazendo autênticos panegíricos dos réus para em
seguida condená-los. Ou vice-versa: quase denigrem, mas acabam por absolver.
Por isso debochemos e crucifiquemos, mas…
O Brasil adora legislar e tem
um respeito quase divino pelas palavras com o étimo de supremo: superavit,
supérfluo, superfície e, naturalmente, super-homem. Há raízes ainda mais
remotas deste super de supremo: o grego “hyper” e o indo-europeu “uper”.
Na estrutura profunda de
instituições em crise no Brasil há uma situação paradoxal de um descalabro
vigente hic et nunc no STF: alguns ministros não são
ministros. Eles são chefes e às vezes cúmplices ou reféns do que acontece, mas
ministros, não. Eles não estão lá para interpretar em instância suprema a
Constituição? É isso que o nome indica: ministro do Supremo Tribunal Federal.
Nem entremos na designação equivocada. Pois não deveriam ser designados
ministros e, sim, juízes.
A língua do povo
O STF manda. Está nas leis. E como usos e costumes são melhores intérpretes das leis do que qualquer ordem vazada em juridiquês, na língua do povo prevaleceu um frasco jurídico de notável brevidade e esclarecimento: manda quem pode e obedece quem precisa.
Notemos, porém, uma complexa
sutileza: tradicionalmente o português do Brasil usa o imperativo para pedir, e
o subjuntivo para mandar. A expressão das rezas “rogai por nós” pede ou manda?
“Publique-se” é uma ordem? Mudando o verbo, poder-se-ia mandar ou pedir na
lanchonete “faça-se um sanduíche”?
O poeta Luís Vaz de Camões deu
ordens precisas a ninguém menos que o todo-poderoso rei de Portugal: “Tomai
conselho só de experimentados,/ Que viram largos anos, largos meses,/ Que,
posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe”.
Mas, então, ele mandava no
rei, uma vez que usou o imperativo? E note-se que usou “experto” e não
“esperto”, de onde derivaram esperteza e espertalhão, que hoje sobram no
Brasil, enquanto a expertise cai. O português do Brasil reluta em aportuguesar
o inglês expertise.
As formas verbais
Estudando as sutis
complexidades destas variações, de acordo com o contexto em que as ordens são
dadas, João Malaca Casteleiro, professor catedrático aposentado da Universidade
de Lisboa, falecido em 2020, aos 85 anos, publicou um livro saboroso cujo
título, A arte de mandar em português (Editora Lexikon), mede
a frequência com que alternamos estas formas verbais para dar ordens e
preferimos ordens afirmativas em vez de ordens proibitivas.
Na década de 1960, nos
exemplos que ele colheu, o português do Brasil em 64,49% dos casos prefere o
subjuntivo para ordenar, e usa o imperativo em apenas 19,2% deles.
Em Portugal, a língua é a
mesma, assim como em toda a África portuguesa e em outros países que integram a
comunidade lusófona, mas o português europeu usa o imperativo em 42,25% dos
casos para dar ordens, e o subjuntivo em apenas 43,49% deles, uma diferença de
21% no interior da mesma língua.
Podemos concluir que Portugal
manda de um modo bem diferente do que se manda no Brasil. Já quando se mede a
porcentagem entre ordens afirmativas (faça isso) e ordens negativas (não faça
isso), o equilíbrio é perfeito: 68,49% para o Português europeu, e 68,53% para
o Português do Brasil nas ordens afirmativas, e 15,25% e 15,12% respectivamente
nas ordens negativas.
Pode ser que o Brasil tenha
excessivos cuidados ao dar ordens, tão excessivos que raramente elas são cumpridas.
E isso afetou os órgãos públicos numa escalada jamais vista nas últimas
décadas, em proporção a ser analisada à luz deste livro interessantíssimo e
revelador, que poderá servir de ferramenta para melhor entendermos o binômio
empresa pública x empresa privada.
A gente e não agente
No exemplo que segue, sem
citar nomes, é o caso de perguntar: doutor, eu levo ou não levo os patos? É
documento vindo do STF. Os leitores vistam luvas para manusear e lupas para ler
o lavrado.
“O texto constitucional ao
empregar o signo “serviço”, que, a priori, conota um conceito específico na
legislação infraconstitucional, não inibe a exegese constitucional que conjura
o conceito de Direito Privado”.
No mesmo documento, lê-se
também: “A exegese da Constituição configura a limitação hermenêutica dos arts.
109 e 110 do Código Tributário Nacional, por isso que, ainda que a
contraposição entre obrigações de dar e de fazer, para fins de dirimir o
conflito de competência entre o ISS e o ICMS, seja utilizada no âmbito do
Direito Tributário, à luz do que dispõem os artigos 109 e 110, do CTN, novos
critérios de interpretação têm progressivamente ampliado o seu espaço,
permitindo uma releitura do papel conferido aos supracitados dispositivos”.
Descontados “por isso
que, ainda que” na mesma frase, reprovados in limine por
meu professor do ensino médio, o cônego Germano Peters, de saudosa memória,
devoto piedoso do latim eclesiástico, idioma recomendado então para questões
complexas, resta ao antigo aluno, desde há tantas décadas professor, perguntar
ao STF: a gente pode levar os patos ou não? A gente e não agente, claro. Isto
é, podemos ser governados por quem elegemos nas urnas ou só depois que algum
ministro meta o nariz onde não foi chamado e autorize ou reprove as
providências emanadas do presidente da República?
Título e Texto: Deonísio da
Silva, revista Oeste, 20-3-2022, 19h14
Deonísio da Silva é professor e escritor, Doutor em
Letras pela USP, e autor de Mil e uma palavras de Direito e do romance Stefan
Zweig deve morrer, entre outros 35 livros.
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