É óbvia a tendência para empregar atores negros em papéis consensuais ou evidentemente “brancos”. A chatice é que o mundo ameaçaria explodir à mera sugestão de um ator branco “ser” Martin Luther King
Alberto Gonçalves
Notei algum rebuliço pelo
facto de se entregar a uma atriz negra o papel de Pequena Sereia. Antes de me
envolver na excitação, fui investigar o que é a Pequena Sereia. Desisti ao
perceber que é uma bonecada da Disney. Não é que eu não goste da Disney. Sucede
que preferia ser levemente molestado num beco escuro por uma tribo de campistas
do Bloco a ter de consumir qualquer dos produtos que essa empresa produziu nos
últimos 50 anos (salvo o “Uma História Simples”, do David Lynch, que deve ter
sido engano).
Voltando ao tema, pelos vistos
a Pequena Sereia era branca e agora é negra. E? Tendo andado afastado dos
estudos de criptozoologia, não me recordo de que cor são as sereias. Também é
natural que as haja de várias cores e subespécies, como os atuns. E o pormenor
de serem um bicho (meio bicho, vá) mítico faz com que, em matéria de
pigmentação, o céu seja o limite. Por mim, tudo bem. O importante é que as
crianças fiquem contentes.
Das crianças brancas,
vermelhas, castanhas e amarelas, não sei. Ao que consta, as crianças negras
ficaram felicíssimas. Li não sei onde que, ao saber da nova sereia, uma criança
negra correu radiante para a mãe: “Ela é igual a mim! Ela é igual a mim!” Para
a petiza em questão, todos os negros são iguais. Descontando o leve aroma a
racismo, é bonito, quase comovente. Eu próprio me senti assim quando descobri
que a voz do Homem do Bussaco pertencia a um caucasiano. Foi há meia dúzia de
anos, mas a minha mãe não compreendeu as razões da algazarra.
Qual o problema de negros desempenharem papéis cinematográficos antigamente desempenhados por brancos, incluindo sereias, unicórnios, os Estrumpfs do “Avatar” e o Monstro do Lago Ness? Nenhum. Se não estou em erro, uma das características do cinema é que as pessoas façam daquilo que não são. Por muito que isto possa chocar os distraídos, De Niro não era realmente taxista, boxeur ou chefe da Máfia. E Denzel Washington nunca foi piloto comercial, ativista ou advogado. O primeiro é um cavalheiro que emite opiniões imbecis e o segundo é o melhor ator em atividade (Robert Duvall reformou-se, presumo). E, logo que lhes paguem, ambos fingem ser coisas diferentes.
O problema não é esse. Um dos
problemas é a questão da plausibilidade. Convém que o ator ou a atriz
escolhidos para uma personagem convençam o público de que, durante duas horas,
eles “são” a personagem em causa. Se esta for uma sereia, uma sardinha, o Bigfoot
ou um gatafunho da Marvel, a tarefa não é complicada. E, desde que os
intérpretes sejam competentes e as idades compatíveis, continua a não ser
difícil aceitá-los em papéis ficcionais “realistas”, de cirurgiões a mendigos.
O caso é mais delicado nos papéis de figuras da História, a grande ou a
pequena. Em princípio, não se põe uma adolescente com 1,50m a simular Lincoln,
ou um velhinho surdo a fazer de Whitney Houston. E é um nadinha esquisito que
se ponha uma negra a interpretar Ana Bolena.
No entanto, a consorte (e que
sorte) de Henrique VIII numa série da HBO é mesmo negra, liberdade criativa
tolerável se não implicasse novo problema, o da unilateralidade. Explico: é
óbvia a tendência para empregar atores negros em papéis consensuais ou
evidentemente “brancos”. Descontada a irreverência infantil do exercício, daí
não viria mal ao mundo. A chatice é que o mundo ameaçaria explodir à mera
sugestão de um ator branco “ser” Martin Luther King ou um escravo anónimo do
século XVIII. Mudar a “etnia” da rainha de Inglaterra é um ato arrojado,
“branquear” na tela a rainha de Sabá seria comparável ao Holocausto. Ou pior:
constituiria o crime de “apropriação cultural”.
Além de particularmente
estúpido, a “apropriação cultural” é um conceito deliciosamente vago. Ao
contrário do que poderia parecer, não se verifica se, por exemplo, um índio da
Amazónia veste calças ou um chinês come um hambúrguer. Ou uma negra americana
interpreta uma monarca britânica. Por motivos insondáveis, a “apropriação
cultural” somente pode ser cometida por brancos, os responsáveis por cada
calamidade na Terra. (Em fita recente, e decerto medonha, “The Woman King”,
vende-se a patranha de uma guerreira africana que exorta o seu reino do Daomé a
desobedecer aos ingleses e a abolir a lucrativa colaboração no tráfico de
escravos; patranhas à parte, a exortação veio de Londres, e a abolição foi
temporária.)
Se deixarem à solta o
movimento “woke”, e em Hollywood já deixaram, às tantas será impossível a um ator
branco arranjar emprego exceto na recriação de Goebbels, ou literalmente a
servir às mesas. Jordan Peele, de quem não voltarei a consumir um produto, já
afirmou que jamais terá um protagonista branco. No limite, um branco nem sequer
poderá vestir a pele (sem trocadilho) de outro branco. Recentemente, a escolha
de James Franco, filho de um português e de uma judia russa, para interpretar
Fidel Castro, filho de espanhóis, suscitou polémica. Dado que privilegiam o
berreiro em detrimento das leituras, acredito que os defensores da pureza racial
pensem que o Carniceiro de Havana possuía sangue Azteca, e pretendam preservar
imaculada a sua memória. Além de divertida, a “racialização” em curso é
assustadora. E demasiado semelhante a tempos passados, ou que se julgava
passados. Na essência, um tempo em que atores negros não conseguiam trabalho
por serem negros não difere de um tempo em que o conseguem apenas por serem
negros.
Eles lá sabem. Por mim, não
verei “A Pequena Sereia” (sendo tão pequena, não mereceria a interpretação de
uma anã?). Não por causa da cor da atriz, claro. É que as sereias sempre foram
associadas a tempestades, naufrágios e desgraças afins. Hoje, para cúmulo,
associam-se à Disney.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
17-9-2022, 0h21
Esgotado o filão operário vs capital e tendo a história provado que a versão deles era a errada, há que encontrar novos temas fraturantes para dividir e reinar. O tema raça é o preferido deles. Tem a (grande) vantagem de os que eles aliciam com os amanhãs que cantam (a raça negra), ser a maioria em termos numéricos e apresentar uma inquestionável tendência de crescimento.
ResponderExcluirResumindo e simplificando, maior probabilidade de votos. Pelo caminho encantam uns brancos ociosos, enfadados pelo bem-estar conquistado pelos seus antepassados e atemorizam outros que, com medo de não venderem o que quer que seja que produzam, alinham no conto do vigário. Em Hollywood, abundam estas duas espécies.
Paulo Cardoso