terça-feira, 27 de dezembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Bichinho arredio

Raimundo de Souza  

ACHEI VOCÊ no jardim do meu olhar. Você era a flor mais bonita, a que se destacava das outras, como em alvíssaras (1), a que sobressaia e brilhava com uma intensidade que nenhum poeta saberia descrever. Havia um beija flor que pairava (lembrava um helicóptero em miniatura) elegante, numa espécie de voo-dançante cadenciado.  

Enquanto batia freneticamente as asas, com o bico, beijava a maciez que lhe evolvia, numa suavidade perene (2). Depois dava uma volta curta em torno das outras plantas e sumia, de vez, junto com o vento. De repente... de repente você murchou. Ficou abandonada, esquecida. Seu brilho, faiscante e de pura magia, se quedou inerte, sem vida, ofuscado.  

Aquela sensação de bem-estar que emanava do seu aroma, perdeu o magnetismo. Ninguém mais parou para lhe contemplar, nem o passarinho que vinha de longe ousou se aproximar. Sua elegância ímpar, num dado momento, se despojou completamente do viço. Você se apagou, por inteira, se fez em tristeza contagiante.  

Se trancou, sem explicação, se enclausurou sem motivos aparentes numa redoma escura. Toda você virou desespero, largada à sorte, ruína de si mesma. Foi aí que me veio à cabeça a ideia maluca de lhe roubar. Você estava estiolada (3), definhada, o coração partido e sem forças. Movido por esse plano meio doido, levei você às escondidas. Como um bandido que age desonestamente e não quer ser pilhado em flagrante.  

Cuidei, então, de você, no aconchego da minha casa. Seu corpo, cheio de feridas abertas, se decompunha coberto por chagas e espinhos pontiagudos. Durante meses, lhe alimentei. Reguei sua tez com paciência, banhei suas intimidades com água limpa. Podei as dores e os dissabores. Afastei as lembranças que lhe magoavam. Por um longo tempo, só tive olhos para você.  

A sua solidão doía, não só em seu coração. Igualmente purgava no meu, fazendo o acelerar descompassado. O flagelo que castigava a sua alma, eu sentia o danado aqui dentro do peito, dilacerando. O receio de vir a óbito só e abandonada, tanto machucava a você, quanto enlutava a minha existência. Com o passar do tempo, fui lhe avivando, lhe realçando, lhe revigorando.  

Moldei, sem pressa, seu novo eu. Fundi a sua imagem numa escala ascendente, até que, sem querer, me vi recompensado. Me vi retribuído e premiado pelo esforço do seu retorno à vida. De joelhos no chão e o espírito voltado em direção ao céu, agradeci à Deus não ter sido em vão o seu tempo de cativeiro passado ao meu lado.   

Aos poucos, com a nossa convivência diária, com as nossas relações íntimas, você foi me envolvendo, me prendendo, me enlaçando, me abrangendo, me contagiando de tal forma, que acabei por me quedar vencido, atenuado, fundido em sua beleza, inebriado pelo seu porte de princesa, e pior: enfeitiçado pelo seu jeito nobre de me fazer a cada dia, a cada minuto, mais e mais feliz.  

E foi a partir daí, desse querer cada vez mais forte, que passei a dividir, também com você, os meus dias, as minhas horas, meus segredos e mistérios... minhas causas secretas e confidências. Como um garoto imaturo e sem a experiência de um homem de verdade, lhe expus meus ilusórios. Desenhei meus medos e falei abertamente enumerando meus fantasmas.  

De contrapeso, listei meus pontos fracos e sem vigor, sem a robustez necessária de pensar e de agir com os pés no chão.  Abri a alma por inteira e me deixei ser levado pela magnificência da lealdade que brotava do fundo do seu coração. Falei do meu hoje, do meu presente. Exibi para você, as minhas incertezas e desconfortos para com o futuro.  

Em paralelo a tudo, ensinei você, de pouquinho, aos goles escassos, a acreditar no amanhã.  Fiz você voltar a crer novamente na vida. A aceitar seu destino sem temer os percalços que ainda estavam por vir. Mostrei a você que se fazia necessário gostar primeiramente de si mesma, se amar, ter esperanças e persistência, sempre, houvesse o que houvesse, acontecesse o que acontecesse.  

Por fim, deixei para você uma herança. Na verdade, leguei um pedaço de mim em forma de experiência transformada em carinho, sedimentada em nacos recheados de quimeras imorredouras. Transferi a você, e para você, o amor que nasceu em mim. Um amor recheado por porções enormes de sentimentos fortes que brotaram do fundo da minha intrepidez e me fizeram ver o mundo ao redor, por outro ângulo.  

Através desse amor e da sua ânsia de querer ser feliz, quando eu não mais me fizer presente, partirei feliz. Você um dia... não sei quando, ficará sem mim. Todavia, não morrerá. Ao oposto, se agigantará. Prosperará, na sua altanaria (4) e será uma benção por onde passar. Aqui dentro, em algum lugar do meu âmago, eu sinto, que a minha dedicação lhe trouxe tranquilidade e confiança plenas.  

Igualmente colocaram em seu “eu” interior, garra inquebrantável e determinação desassombrada. Ânimo e audácia, perseverança e arrojo. Afoitamento e visão abrangente para encarar os desafios que ainda estão encobertos por horizontes incertos. Hoje, Meu Deus! Hoje, quando lhe vejo no jardim dos meus olhos, pressinto alguma coisa diferente em derredor de tudo o que me cerca.  

Parece que o sol foi areado (5) de novo pelo Criador, com suas mãos de ternura. Talvez seja por isso que eu sinta o astro rei derramando sobre nós, e sobre você, em especial, um grande jorro de luz. Luz forte, incandescente. Por tudo o que passamos, por tudo o que vivemos, e pelo que nos tornamos, carrego aqui dentro de meu escondidinho, a convicção plena de que fiz o certo quando lhe (roubei) e abri as portas da minha casa.  

Sei que você também se recorda, sem nenhuma tristeza, ou magoa, dos “foras propositais” que a vida nos deu. Sei que você não se deslembrou (6) dos desencontros pelos quais ele, o Destino, nos fez e nos obrigou a atravessar... com certeza, você e eu, agora sabemos: a Má Sorte, os Atalhos que pegamos, o Universo, meu amor, o Pai Maior, inquestionavelmente, só estava juntando EU E VOCÊ, para sermos UM SÓ. 

Notas de rodapé: 
1) Alvíssaras – Recompensa para todos que trazem boas novas. 
2) Perene – Duradouro, inacabável, eterno. 
3) Estiolada – Debilitado, fraco, sem forças. 
4) Altanaria ou altenaria – Aquilo ou aquele que voa alto. 
5) Areado – Sociável, imaculado, delicado. 
6) Deslembrou – Não deixou de lembrar, ou não desmemoriou. 

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