quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

[Daqui e Dali] A ingratidão dos filhos

Humberto Pinho da Silva

Resguardada do ardor da tarde sob frondoso castanheiro, na cercania de carriça transmontana, a velhinha fia.

Pintura: Van Gogh

Tem o rosto sulcado pela goiva do tempo. Olhos apagados, lábios finos, boca desdentada, e tez crestada, da cor de centeio.

Fia, e o fuso gira...gira...gira... pressionado pelos descarnados dedos.

Foi moça fagueira; esbelta, de farta cabeleira calamistrada e viçosa face da cor de nácar. Casou… Foi mãe.

Criou filhos, que abalaram...

Todos partiram: uns, para o Céu; outros, em demanda de vida melhor...

Ficou mergulhada em saudade e cuidados de quem a deixou.

De tempo a tempo, telefonam, escrevem...

Prometem interná-la num lar...

Daqueles que guardam pais e mães, que deixaram de serem prestáveis.

Cuidou dos filhos com esmero, ajudou-os a darem os primeiros passos, a comerem à mesa, aparou-lhes a baba viscosa, que escorregava do beiço, enxugou-lhes o húmido nariz, branqueou-lhes a roupa enegrecida pela traquinice, passou horas de angústia à cabeceira do berço...

Os meninos eram tudo, e tudo era para eles.

Agora, é a mãe que carece de mão amiga: quem a ampare; quem cuide; quem lhe lave a veste enodoada; quem lhe apare as unhas endurecidas; quem a desvele com carinho.

Para que nada lhe falte.

Mas os filhos não têm disponibilidade...

Olvidam que chegou o tempo de retribuírem; esquecem-se de pagarem - os cuidados, os carinhos que receberam...

Meditando, a velhinha fia.

E o fuso gira... gira… gira...

Pelos desgastados olhos desenrolam-se cenas amorosas, recreações pueris, que a memória guardou, com amor.

Agora só Deus permanece...

Só Ele ficou...

Os gerados pelas suas entranhas esquecem-se, que a felicidade, o diploma, a riqueza que gozam, é fruto daquela velhinha, que junto ao carriço, arrimada ao secular castanheiro fia... fia... fia...

Zagaziantes lágrimas de saudade, docemente escorrem pela face encarquilhada:

"Coitados! Têm muito que fazer... A culpa é das mulheres... trabalham muito. Como gostava de estar na companhia deles!…”

Leve sorriso amoroso, alastra-lhe pelo rosto tisnado...

E o fuso fia...fia...fia...

Título e Texto: Humberto Pinho da Silva

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3 comentários:

  1. Fico pensando em seu excelente escrito e ao mesmo tempo triste pelo paradoxo dos pais e avós que abandonaram seus filhos e netos, dos tios, primos e padrinhos que não acompanharam suas infâncias e futuros., que dariam outro excelente texto. Nós nos acostumamos a escrever biblicamente, contando em versículos somente um lado dos nossos aforismos. A vida é uma dualidade constante, não há no mundo uma civilização que não tenha sofrido escravismo e agruras familiares. Achoe que todos deveríamos ser cosmopolitas, de um jeito político ou de outro sempre seremos escravos. Desculpa-me por tentar ser deus e escravo de mim mesmo.
    fui...

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    1. Obrigado pelo amável comentário,e que o Menino Deus lhe dê neste Natal muita paz e saúde.

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    2. O comentário acima é de Humberto Pinho da Silva, autor do texto.

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