sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Lance de brilho

Aparecido Raimundo de Souza

PRENDERAM O OZÓRIO
na quinta-feira. Segundo relato dos policiais, ele estava com o mijacão para fora, às vistas. Um telefonema anônimo partido de uma vizinha nova, que viera morar contígua dele, coisa de uma semana, mãe de duas meninas menores de idade, entre doze e quinze anos, levou a viatura da polícia militar 532 até o bairro do Córrego do Pinga Fogo, onde o coitado mantém uma cocheira cuidando de cavalos de raça de um rico industrial. Ao lado, ele se abriga do tempo, numa casinha de alvenaria, com a mulher e seis filhas, além da sogra paralítica vegetando os dias que lhe restam em uma cadeira de rodas. A coisa toda começou em face de uma das garotas da nova inquilina (que fizera amizade com uma das adolescentes de Ozório), ter comentado com a mãe que o pai da sua nova amiguinha “estava com o mijacão bailando abertamente pelas ruas da comunidade”.

Não deu outra. Algemado, abatido, trajando apenas uma calça jeans desbotada e mancando bastante de ambas as pernas, o coitado foi arrastado pelos ocupantes da viatura à presença do Apolônio, a autoridade de plantão. Na hora em que o colocavam no cofre, uma pequena multidão se agrupou em frente ao portão do desditoso e, se não fosse à força bruta dos fardados, Ozório teria sido linchado. Apesar disso, não puderam acalmar os ânimos das vozes em profusão que se agigantaram desenfreadas:
— Maldito pedófilo, apodreça na cadeia, seu merda...
Diante do sisudo Apolônio, policial civil plantonista, levou, como cardápio de entrada e de boas-vindas no recinto da DP, uns tapas em meio ao rosto coradamente envergonhado:
— Então você é o engraçadinho do bairro?
— Eu? Não senhor...

— As mulheres disseram que estão sendo molestadas. E não só elas, as filhas também...
— Moles... moles o quê?
— Molestadas, idiota! MOLESTAAAAAADAS...
— Não fiz isso aí que o senhor está falando. Aliás, não fiz nada à nenhuma delas, muito menos às crianças. Sou um cidadão respeitador...
— Vai me dizer que não anda mostrando as “coisas” às senhoras de respeito e pior, seu verme, às crianças?
— Mostrando as “coisas?”.
— Isso. As suas “coisas...”.
E tome mais safanões e bordoadas:
— Que “coisas”, seu moço?!
— Não se faça de besta, nem queira me dar papel de otário.

Tomou fôlego e seguiu cheio de marra:
— Na minha testa está escrito em letras garrafais que sou burro ou que nasci ontem? Saiba, seu famigerado que as minhas nevroses (1) estão à flor da pele. Por conta, posso lhe aplicar uma surra memorável de borracha maciça nesse lombo desgolembado (2).
— Seu policial, realmente não fiz nada. Apenas fui tomar umas pinguinhas na birosca do seu “Manoel Papagaio”. Ele “aprova” tudo que acabei de lhe falar, se o senhor mandar chamar ele aqui.
— Mentira.
— Verdade.
— E o telefonema?
— Não sei de nenhum...!
— As mães da sua rua, em peso, andam tiririca. Estão querendo lhe cortar fora o mijacão. Pedófilo sem vergonha. Não tem vergonha? Seis filhos, duas mulheres para cuidar e ainda arranja tempo para importunar as crianças inocentes?

— Por que as mães lá da minha rua andam tiririca, seu doutor? Não fiz nada!
Mais irritado que corno manso ao saber que tomou chifre da patroa, o policial civil Apolônio partiu para cima do indefeso, ao tempo em que grudava em seu pescoço com ódio descomedido nos olhos:
— Olha, seu verme infame. Eu deveria ter permitido que fosse linchado. Deixa o delegado chegar. Você será processado por afrontar menores. Pessoalmente eu terei prazer em lhe meter no xilindró. Nele você ficará fora de circulação por alguns dias, até ser chamado na presença do juiz. E de lá, para o presídio. Quer me convencer que é santo e não anda balançando o mijacão?
— Mijacão, eu? Mas que diabo de mijacão é essa coisa que o senhor se refere?
— Mijacão, imbecil! Cretino, tarado, pervertido. Mijacão é o seu órgão genital. O troço que você usa para mijar. O PINTOOOOOO! Fui claro? Mijacão, é ainda, essa coisa mole que você tem no meio das pernas e agora só serve para assediar as crianças do Pingo Fogo...

Ozório desatou a chorar e a soluçar copiosamente. E tome mais golpes desferidos nos costados:
— Mas seu policial, eu só faço xixi em casa, no meu urinol (3). Na rua não. Nunca, jamais. É tudo mentira do pessoal. Minha vida é cuidar dos cavalos do meu patrão e...
De repente, irromperam, sala adentro, o delegado Cirineu, a esposa de Ozório, o patrão do rapaz e três advogados. Lá fora, uma multidão vinda do Bairro Pinga Fogo (agora completamente mudada, em face da chegada do patrão e dos causídicos) se solidarizava com o imprevisto acontecido ao cuidador de cavalos.
— Nossa, o moço é pobre mas tem pedigree (4). Olha os carrões que trouxeram o patrão do nosso querido e amado vizinho...”.
Na delegacia, junto com o policial civil Apolônio, se encontrava o clinico geral do nosocômio, o doutor Fagundes, que fora chamado para diagnosticar alguns presos que pareciam estar com sintomas da dengue e Covid-19:
— Policial Apolônio —, indagou um dos advogados presentes. O que realmente apuraram, até agora, em face do suposto crime atribuído ao senhor Ozório?

Apolônio, sem sair da sua empáfia (5), apresentou seu relatório em vista do que até aquele momento havia sido trazido desde o deslocamento da viatura ao bairro do Pinga Fogo:
— Doutor, qual a sua graça?
— Eduardo da Ganha Todas. Então? O que, de fato, a polícia tem de concreto para manter o senhor Ozório privado da sua liberdade?
— Seguinte, doutor Eduardo. Esse sujeitinho aqui veio preso por força de uma denúncia anônima pelo delito de pedofilia e eu só estava esperando o doutor Cirineu para fazer o flagrante:
— E qual o crime?
— Acho que fui bem claro, senhor. Pedofilia. Esse marginal estava com o mijacão à mostra, exibindo o dito aparelho urinário às crianças e senhoras do bairro:
— Mijacão?

Ao ouvir essa palavra, o doutor Fagundes, até então num canto, calado, pediu um aparte:
— Perdão, policial Apolônio. O senhor mencionou a palavra mijacão?
— Com todas as letras, doutor. Por que a pergunta?
O mestre da saúde se dirigiu primeiro ao Ozório. Deu uma rápida examinada nele, da cabeça aos pés:
— Senhores, por favor. Esse homem está doente — disse em alto e bom tom, se dirigindo, agora, a todos.
O delegado Cirineu, sem entender o que o comandante do bisturi dissera, se colocou ao lado do seu policial, o Apolônio:
— Doutor Fagundes, esse safado não sofre de porcaria nenhuma. Precisa é de uns bons tapas nos “escutador de novelas” para aprender boas maneiras. Imagine os senhores (agora falando aos demais) que esse marginal tem mulher, por sinal aqui presente, filhas pequenas, um “cardume” de cavalos para cuidar e ainda arranja um tempinho para perturbar o sossego e a paz das coroas do bairro e pior, o mais crítico: se prestando a aperrear os impúberes com atos obscenos.

Deu uma respirada forte e prosseguiu, carrancudo e indolente:
— Meia hora no “pau de arara”, com certeza, endireito a carreira dele...
O cirurgião novamente veio em socorro de Ozório. Se aproximou do delegado Cirineu, do policial Apolônio, da esposa do detido, dos advogados e do patrão do pobre infeliz. Encarando de frente o policial Cirineu, renovou a indagação:
— Doutor Cirineu, qual o crime que o seu policial disse que o Ozório violou?
— Atentado violento ao pudor, pedofilia e importunação sexual de menores entre outros, doutor Fagundes. Ele gosta de exibir seu mijacão sem maiores pudores... em pleno dia, à céu aberto...
— O senhor disse mijacão? – Insistiu o doutor:
— Pelo amor de Deus, me poupe! Até o senhor, doutor Fagundes? Isso mesmo. Mijacão...
O doutor Fagundes voltou a reexaminar o Ozório e o fez, agora, mais demoradamente:

— Amigo Cirineu, amigo Apolônio, esse homem está doente...
Em ato seguinte, pediu à Ozório que desse uma volta em torno deles:
— Não posso, doutor. Estou coxeando (6) das “duas perna...”.
— Era o que eu previa. Cirineu, meu velho, como diretor geral do hospital local aqui da comarca, rogo encarecidamente que suspenda, agora mesmo, qualquer correção a esse rapaz. Me perdoem todos que aqui se fazem por conta dessa situação. Não me levem a mal os caríssimos advogados, tampouco o patrão, a quem estou vendo e conhecendo hoje, pela primeira vez, bem ainda a esposa do acusado. Prezados, se esse rapaz não for atendido de pronto, terei que comunicar pessoalmente ao juiz Bartolomeu: tortura psicológica, maus tratos e abuso de poder... sobretudo abuso de poder a um cidadão enfermo...
O médico foi embargado pelo patrão de Ozório:
— Doutor, em que o senhor se baseia para fazer tal afirmação da doença de meu funcionário?

— Ao que acabei de declinar, meu nobre senhor. Esse rapaz precisa ser internado. Carece de cuidados urgentes.
Foi a vez do delegado estufar as veias do pescoço:
— Prove a nós todos que esse crápula está doente.
O doutor Fagundes pediu ao Ozório que se movesse:
— Dois passos à frente, por gentileza.
— Não consigo, doutor...

O delegado Cirineu estava visivelmente transtornado:
— Vai me dizer que não conseguirei fazer nada com esse miserento e se eu insistir, o senhor ira me “entregar, de bandeja”, ao “capa preta?”.
— Disse e repito, doutor Cirineu. Se os nobres advogados aqui presentes requererem, por exemplo, um exame de corpo de delito, com certeza todos os envolvidos nessa prisão arbitrária terão sérios aborrecimentos...
O delegado não se conformou. Se fez possesso, fora de si. Espumava, irado:
— Doutor Fagundes, meu caro. Raciocine comigo: esse elemento é um pervertido, um maníaco sexual. Não ouviu o meu policial Apolônio? Sem falar nos militares da viatura que atenderam a ocorrência? Imagine, se a moda pega?!

O doutor Fagundes, sem alterar a voz, voltou a indagar, o semblante plácido e bonançoso:
— Que moda, doutor Cirineu, repetindo e com todo respeito à sua pessoa e ao cargo que exerce? Que moda?!
— Andar com o mijacão à solta. Exibir e, grosso modo, balançar o dito. É crime. Está no Código Penal e no Estatuto da Criança. O senhor também, com todo respeito, deveria ter conhecimento... é lei.
O chefe do hospital passou a mão em sua maletinha, colocou o aparelho de medir pressão em baixo do braço e se dirigiu aos dois representantes da ordem:
— Uma perguntinha básica, antes de me retirar: o que todos aqui nessa sala entendem como mijacão?
O policial civil Apolônio se adiantou, alardeando um conhecimento longe de corresponder à realidade:
— Aquilo que todos nós, homens, temos entre as pernas. É o membro...

Ao que o delegado Cirineu emendou, para deixar bem sedimentada a sua posição de representante máximo da ordem:
— Ou seja, doutor Fagundes, o cacete, o órgão sexual, o piru, ou outro nome mais esdrúxulo (7) que o senhor, ou a sua medicina, “queira” dar. Me perdoem os termos, e aqui peço desculpas à esposa desse filho de uma égua...
O doutor Fagundes, tranquilo como sempre, chamou a atenção de todos, propondo uma observação simples ao Ozório:
— Gostaria que olhassem com bastante atenção para o Ozório. Percebam que ele fraqueja das pernas. Segundo o que nos relatou o ilustre Apolônio, ele passa o dia cuidando de cavalos. Não é verdade?
O delegado Cirineu, muito sério e com fortes demonstrações de perder a paciência:
— Positivo...

O policial civil Apolônio em apoio ao delegado, não se fez de rogado:
— Positivo...
O terapeuta foi mais fundo em suas observações:
— Esse cidadão trabalha descalço, em contato direto com a terra suja onde, igualmente, trafegam os animais de seu patrão. Correto?
— Positivo — grunhiu o delegado Cirineu sendo corroborado pelo policial Apolônio:
— Positivo e operante...

O galeno Fagundes seguiu na sua trajetória sem se afastar um minuto sequer do seu raciocínio:
— Observem, por favor, um detalhe de suma importância. O moço mal consegue andar ou se manter ereto. Praticamente está se arrastando. Isso é óbvio, em vista dos tumores que o atormentam em carne viva às solas dos pés. Tais abcessos foram causados pelo contato direto das regiões afetadas em decorrência da convivência ininterrupta dele com o volume das segregações expelidas pelos animais que estão em seu poder...
— E daí —, berraram a uma só voz, o delegado Cirineu e Apolônio: qual a ligação?
Sem deixar de sorrir, o esculápio mandou a cartada final:
— A isso, meus caríssimos representantes da lei, a minha medicina dá o nome de mijacão, mijicão ou mijação.

Apuraram mais tarde, em novas diligências, que vizinhas realmente acionaram o destacamento militar para que fosse providenciado uma viatura a ser direcionada à localidade do bairro do Pinga Fogo, para atender alguém carecente de internação, uma vez que a cidade literalmente afastada da capital, não dispunha de ambulância para remoção de doentes. Para engrossar o caldo, o rádio operador, novato e completamente desligado de suas funções, entendeu a ocorrência de modo truncado. Ozório, por pouco não pagou o pato. Por assim, se viu removido com honrarias e pedidos de desculpas diretamente para a emergência do pronto socorro do hospital do doutor Fagundes.

Notas de rodapé:
1) Nevroses – O mesmo que o centro as dores, das angústias e exaltações.
2) Desgolembado – Mal vestido ou completamente desarrumado.
3) Urinol – Vaso para depósito de urina e fezes noturnas. Variante: penico.
4) Pedigree – No sentido do texto, a palavra sinaliza alguém com bom relacionamento na sociedade. Querido, amado.
5) Empáfia – Soberbo, altivez, arrogância.
6) Coxeando – Mancando ou capengando
7) Esdrúxulo –Esquisito, estranho, inusitado.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 16-12-2022

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