Aparecido Raimundo de Souza
FALTAVAM POUCOS minutos para os
ponteiros do relógio da igreja matriz badalarem anunciando as vinte horas.
Florbela voltava da casa de sua tia acamada, em vista de um AVC sofrido
recentemente. Ao cruzar a pracinha do coreto em direção a sua residência, se
deparou com alguns retardatários saídos do último espetáculo daquele domingo
levado à efeito em face do “Circo do Regabofe”, recém-chegado à cidade. Vários
grupinhos comentavam, à alta voz, as impressões sobre o que haviam achado da
apresentação. Florbela passou por eles, engalanou (1) com um aceno de cabeça
alguns conhecidos e seguiu em frente. Na rua antecedente a sua, um fusca vindo
em sentido oposto quebrou o silêncio reinante acionando uma buzina cuja
sonoridade despicienda (2) lembrava uma melopeia (3) dos tempos antigos. Foi depois
dela que Florbela avistou a figura raquítica do menino vestido de preto dos pés
à raiz dos cabelos.
O piá parecia perdido, ou melhor, ao encará-lo com mais agudeza, percebeu que o jovenzinho se fazia impaciente, dando a impressão de querer se livrar de alguma necessidade fisiológica urgente. Pensando em ajuda-lo apertou os passos na calçada irregular fazendo com que seus movimentos dentro dos sapatos sentissem cada centímetro vencido. Não demorou se viu ladeada à criatura. Sem mais delongas, dando uma de boa samaritana, pegou o pequeno pelo braço e o conduziu até junto de um muro pela metade. Depois de pronto, essa parede protegeria toda a frente de um sobrado de quatro andares. Ao continuo, embora sem muita claridade ao redor, fez sinal de silêncio com os dedos entre os lábios. A voz terna mandou que o garoto ficasse à vontade e fizesse o que desejava:
— Tenha calma. Não se apresse. Te dou cobertura, numa boa. Estarei o tempo todo de costas. Vai, faz o que tem de fazer...
O miúdo não pensou duas vezes. Sem mais delongas, atendeu prontamente ao pedido da sua salvadora.
Estava em meio ao ato de aliviar a bexiga tirando, como se costuma dizer, a “água do joelho”, quando, levada pelo barulho forte produzido pelo líquido da urina de encontro à terra ressecada, bateu no espírito da beldade, a curiosidade mórbida de se voltar numa leve e inocente viradinha de olhos, intencionando bisbilhotar. Como estava muito próxima, ao fazê-lo, soltou um gritinho estridente de puro espanto. Ficara, na verdade, visivelmente boquiabertada (4) com o que avistara. Veio à mente, de imediato, um namorado distante que a deixou a ver navios, indo embora do lugarejo com outra. E o mancebo, com seus apetrechos à mostra, despertou, do nada, apetites carnais abrindo para ela desejos reprimidos por tantos anos como se viessem de dentro de seu “eu” embalados em novos acordes até então adormecidos nas partituras de seu peito em frangalhos (5).
A deusa se questionou, de pronto, com seus suores e afogos, como um nanico daquela estatura possuía um brinquedo grandiosamente avantajado a ponto de bolinar com as suas partes íntimas à reação inesperada de lhe colocar, assim do nada, no meio da noite, em total desespero e aflição?
— Deus meu, que diabo venha ser isso?
O párvulo (6), apesar da quebra da palavra empenhada pela dadivosa de que não o espreitaria, continuou como se nada tivesse acontecido. Terminada a tarefa, se abriu num sorriso ao tempo em que observava:
— Desculpe, senhorita. Não imaginei que fosse me espionar...
Florbela se condensou num gracejo nervoso em que aproveitando a deixa, emendou uma desculpa esfarrapada que nem a ela própria convenceu:
— Sabe como é, né? “Sou moça-quase-mulher”. Para falar a verdade, faz tempo que não vejo nada parecido. Ainda mais assim... desse jeito... batendo continência...
— Não entendi, senhorita. Batendo continência?
— Deixa como está. Esquece o que eu disse. Quantos anos você tem, meu simpático?
Antes de responder, o fedelho guardou a arma de artilharia e se virou de todo, ficando tête-à-tête com a deslumbrante deusa-gatona:
— Trinta e Cinco. Farei trinta e seis, semana que vem.
Florbela quase teve um piripaque tipo um ataque isquêmico transitório:
— Como é: Você disse trinta e cinco?
— Sim senhorita. Qual o motivo do espanto?
— Olhando você de longe, e levado pela pouca iluminação, vislumbrei a figura de um petiz (7). Melhor dito, de uma criança perdida. Desculpe. Nessa idade, você tem um futuro brilhante com essa lindeza que acabei apreciando sem querer.
Se abanou com um lencinho oportuno saído de dentro de sua blusa como para se espantar de um calor interior que subia queimando as entranhas e continuou:
— Parabéns, por ser dono de uma... de uma ferramenta assim, forte, robusta, cheia de vida... nem dá para acreditar.
— Para a senhorita ver. Coisas da vida. Levando em conta que gostou do que viu, e sobretudo, pelo fato de ter sido prestativa, venha me aplaudir amanhã no espetáculo das dezesseis horas. Será minha convidada especial O que me diz?
— Convidada especial? Espetáculo? Que espetáculo?
— Desculpe, senhorita. Meu nome é Belizário Ferrolho.
— O meu Florbela de Godói.
— Muito prazer.
Enfiou a mão no bolso da calça e retirou lá do fundo um pedaço de papel amarelo:
— Pegue. Aqui está um ingresso de cortesia. Cadeira especial, bem perto do picadeiro.
— Estou voando. Picadeiro? Que picadeiro?
— Do “Circo do Regabofe” montado logo ali, na pracinha. Antes que me esqueça, dona Florbela: eu sou o anãozinho atirador de facas.
Notas de rodapé:
1) Engalanou – Se iluminou, se mostrou contente.
2) Despiciendo – Qualquer coisa desprezível e mesquinha.
3) Melopeia – Melodia, música ou canto monótono, sem valor.
4) Boquiabertada – A boca aberta e escancarada além do normal.
5) Frangalhos –Tudo o que se mostra quebrado, estraçalhado, rasgado ou em pedaços.
6) Párvulo – Outra maneira de grafar a palavra criança, piá, pimpolho, menino ou guri.
7) Petiz – Fedelho, curumim ou pequerrucho.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 9-12-2022
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