Nos momentos que carecem de um chefe de Estado, é garantido que o prof. Marcelo não comparece. Os detratores que lhe questionam o discernimento não explicam esta habilidade para evitar chatices.
Alberto Gonçalves
Vocês conhecem-no. Toda a gente o conhece. É aquele sujeito que aparece sempre que há uma câmara de televisão plantada algures. E que diz coisas sem nexo e sem parança. E que em geral ostenta um sorriso esquisito. E que se agarra a quem estiver nas imediações. E que adora tirar retratos. E que se despe à primeira oportunidade. E que suscita a alguns um sentimento entre a compaixão e o embaraço, o divertimento e a impaciência. Falo, deveria ser escusado notar, do popular Emplastro. Não me refiro ao sr. Nando, que é de Vila Nova de Gaia, costuma andar vestido, fala pouquíssimo e, que se saiba, não custa muito ao erário público. O Emplastro em questão mora em Belém, acode pelo nome de “prof. Marcelo” e, acreditem, é presidente da República. Vocês acreditam. A maioria de vocês votou nele. E por duas vezes.
Como é que nós – “nós” a
nação, “nós” a sociedade, “nós” o coletivo raio que nos parta – descemos a
isto? Como podemos achar isto relativamente “normal”, ou saudavelmente
“normal”? Como é que isto é tolerável? Como é que o “presidente implausível”,
na definição do Vasco Pulido Valente, é possível? Como é que não estranhamos o
Emplastro de Belém, como estranharíamos, suponho, se víssemos o Emplastro de
Gaia ser agraciado com o Nobel da Física? Como é que conseguimos desenvolver
tamanha apatia? Como é que a realidade mais desvairada nos parece corriqueira e
“habitual”? Como é que, repito, descemos a isto?
Dei por mim a marinar estes pensamentos pela enésima ocasião quando, após o jogo Portugal – Suíça, o prof. Marcelo surgiu imediatamente nos diversos canais a comentá-lo. À medida que o campeonato avança, o prof. Marcelo avança igualmente na frequência dos comentários, que entretanto já acontecem no fim, no início e no intervalo das partidas (caso a “seleção” atinja a final da competição, imagino que o homem se encarregue do relato completo para a RTP).
E não são meras
generalizações, estilo “Estou contente porque a equipa jogou bem”. Não senhor:
são disparates detalhados, jogador a jogador, tática a tática, “incidência” a
“incidência”. No pedaço que vi, terça-feira, terminou a esclarecer que iria
enviar uma mensagem ao treinador e telefonar-lhe “às tantas da noite”. Depois
sorriu. Depois inclinou-se para o centro da imagem até quase abalroar a
repórter, talvez mortificado por ter de abandonar momentaneamente as objetivas.
Na quinta-feira, regressou, especado ao pé do autarca lisboeta nas cheias da
cidade.
O Emplastro de Belém
materializa-se na bola, na praia, nas cheias se as cheias forem atribuídas às
“alterações climáticas” e, afinal, no que não seja propício a criar polémica e
onde a sua intervenção é insultuosamente inútil. Nos lugares e nos momentos que
carecem de um chefe de Estado, é garantido que o prof. Marcelo não comparece.
Os detratores que lhe questionam o discernimento não explicam esta curiosa
habilidade para evitar chatices.
As chatices ficam a nosso
cargo. Um sistema de saúde que falece sem dignidade à vista desarmada. Uma
corrupção fulgurante. Uma Justiça aleijada. Um ensino em cacos. Uma liberdade
condicional. Uma economia de rastos. Uma fiscalidade voraz. Uma miséria
imparável. Um destino negro. E, atrás e à frente de tudo, um partido que tomou
conta do Estado e um Estado que tomou conta do país.
E um governo cuja
incompetência, arrogância e endémica desonestidade o prof. Marcelo desculpa,
protege e acarinha com apreciável zelo. Esta época de gangsters exigia
um líder: saiu-nos uma caricatura, que reduziu o cargo a pó.
O prof. Marcelo não preside a
Portugal: por omissão preside à ruína de Portugal, ou no mínimo da frágil
democracia que andámos meio século a tentar amanhar. Podia fazê-lo com
gravidade trágica, mas prefere o destrambelhamento cómico. E continuamos sem
perceber se o destrambelhamento é opção ou fatalidade.
O que se percebe é que antes
de 2016, carregadinho de livros por abrir e de honras por demonstrar, o prof.
Marcelo não passava da típica “sumidade” nacional, um alegado portento que se
esvazia ao primeiro alfinete ou contacto com a realidade, e que, num deserto de
alternativas, os cidadãos elegeram. Desde então, tem sido uma coisa diferente.
O quê? Descontadas as evidências e as suspeitas, o que em suma o prof. Marcelo
mostra ser é alguém com um profundo desprezo pela totalidade das pessoas, exceto
por uma pessoa em particular: ele próprio.
Não há ali frase, gesto ou ação
que não padeça de um narcisismo desmesurado. O exagerado fascínio que ele
simula sentir pelo mundo não esconde, aliás revela, a clausura daquela cabeça.
Vocês conhecem a cabeça, de
resto omnipresente em “selfies”, noticiários e variedades. Mas não querem
conhecer o que vai lá dentro.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
10-12-2022
Marcelo Rebelo de Sousa, o “emplastro” de Belém
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