Olavo de Carvalho
Toda a engenhoca explicativa do marxismo não foi concebida como pura
filosofia, e sim como instrumento prático de destruição da sociedade burguesa.
Um dos mais queridos
entretenimentos dos marxistas, desde há um século e meio, tem sido defender
Karl Marx da acusação de economicismo.
Longe de reduzir tudo às
causas econômicas, dizem eles, o autor de O Capital enxergava no processo
histórico a ação simultânea de um complexo de fatores, incluindo o cultural e o
religioso, onde a economia só viria a predominar "em última
instância", cedendo frequentemente o passo às demais forças. A imagem de
um Karl Marx obsediado pela onipotência da economia é, alegam, uma redução
pejorativa, criada para fins de propaganda pelos críticos burgueses. Há alguma
verdade nisso.
Marx não era nenhum simplório,
sujeito a deixar-se embriagar pela obsessão da causa única, mágica,
universalmente explicativa.
Acontece, no entanto, que toda
a engenhoca explicativa do marxismo não foi concebida como pura filosofia, e
sim como instrumento prático de destruição da sociedade burguesa, e há nela uma
nítida defasagem entre a teoria geral da História e a sua aplicação ao
capitalismo em especial.
Ao descrever o funcionamento
da sociedade burguesa, Karl Marx, alegando que assim procede por motivos de
ordem metodológica, faz abstração dos demais fatores – culturais, políticos,
éticos, religiosos, etc. – e reduz tudo à operação da mais-valia: o truque sujo
mediante o qual o "valor" da mercadoria, definido como a quantidade
de trabalho necessário para produzi-la, é subtraído aos trabalhadores e
embolsado pelo burguês. Não interessa, aqui e agora, contestar a teoria da
mais-valia. Eugen von Böhm-Bawerk já fez isso melhor do que jamais alguém
poderá fazê-lo de novo (Ver A Teoria da Exploração do Comunismo-Socialismo,). O importante é notar
que, de tudo aquilo que veio ao mundo como elemento constitutivo da sociedade
burguesa – o humanismo, a ética protestante, a democracia parlamentar, os
direitos civis, a liberdade de imprensa, as eleições, o sistema judiciário
independente, a previdência social, as leis de proteção às mulheres e crianças,
a escolarização das camadas pobres, a aplicação universal da ciência e da
técnica ao melhoramento da vida humana – não sobra, na definição marxista do
capitalismo, nada. Capitalismo é exploração da mais-valia: ponto final. Tudo o
mais é elemento acidental e secundário, que a "força da abstração"
(sic) deve desprezar para se concentrar no essencial.
Uma vez montado esse recorte
metodológico e descrita na sua lógica interna a "essência do
capitalismo", todos os elementos que foram inicialmente removidos para
fora do foco são declarados retroativamente irrelevantes de fato e reduzidos a
"superestruturas", aparências ou camuflagens ideológicas do mecanismo
central que tudo absorve e explica.
O "burguês" pode
então ser desenhado como o usurpador por excelência, o sanguessuga, o vampiro
que engorda extraindo as últimas gotas de energia da classe trabalhadora, e que
ainda tem o cinismo de adornar esse crime com as belezas enganosas da cultura
moderna, da religião e da assistência social.
A obsessão economicista que
não se pode imputar a Marx na sua compreensão geral da História é assim
restaurada com força total no desenho odiento, monstruosamente unilateral e
caricatural, que ele traça do capitalismo e do burguês. Mas, como esse desenho
e o rancor que ele despeja sobre a figura do burguês são declaradamente os
objetivos finais da obra inteira de Karl Marx, toda a abertura que ele concede
à multiplicidade dos demais fatores é apenas uma concessão provisória destinada a
camuflar e preparar o economicismo brutal e cru com que ele fomenta a revolta
contra a burguesia.
Marx não faz o mínimo esforço
para demonstrar que a exploração da mais-valia é a causa substancial por trás
de todos os benefícios trazidos à humanidade pela cultura da época burguesa. Ao
contrário, ele apela a um expediente que, pelo seu contágio, viria a se tornar
endêmico entre hordas inteiras de praticantes das "ciências sociais":
excluir do campo de enfoque pedaços enormes do objeto estudado e depois, sem a
mais mínima razão, dar por demonstrado que são irrelevantes, ilusórios ou
inexistentes. O que era pura restrição de método torna-se, por um passe de
mágica, uma afirmação objetiva sobre a estrutura da realidade. O efeito
persuasivo não se obtém por nenhum acúmulo de provas ou demonstrações, mas pela
concentração hipnótica no fator escolhido como "essencial", cuja
longa e exaustiva análise ocupa o horizonte inteiro das consciências, removendo
tudo o mais para uma distância onde se torna invisível.
Que a presença histórica de
alguns fatores extra-econômicos tenha precedido de séculos o advento do
capitalismo industrial é, portanto, algo que não precisa ser levado em conta,
nem explicado. Sem o protestantismo e o humanismo, que remontam ao século 16, nada
de sociedade burguesa, mas para que remexer o passado? As provas não só ficam
ausentes, mas são criteriosamente evitadas: qualquer tentativa de examinar os
elementos excluídos terminaria por trazê-los de novo para o centro do quadro,
desfazendo em fumaça o efeito da concentração hipnótica.
Não espanta que isso tenha
realmente sucedido a vários discípulos devotos, que, no empenho de provar a
veracidade do marxismo, acabaram por dissolvê-lo numa variedade de enfoques
causais que não têm de marxista senão o nome. Isso já começa com Lênin: a
teoria da "vanguarda" partidária que se antecipa ao proletariado e o
cria depois da revolução suprime desde logo a ideia dos proletários como forças
primordiais da transformação histórica e, de um só golpe, torna inviável
qualquer tentativa de definir em termos econômicos as classes antagônicas.
Por essa via, o historiador
marxista inglês E. P. Thompson chegou à conclusão de que é impossível, mediante
critérios de pura economia, distinguir um proletário de um burguês. Herbert
Marcuse demite ostensivamente o proletariado da função de classe
revolucionária, colocando em lugar dele os estudantes pequeno-burgueses e o
Lumpenproletariat que Marx desprezava: bandidos, prostitutas, cantores de
boate, drogados, bêbados e malucos em geral. Antonio Gramsci prefere os
intelectuais.
E Ernesto Laclau proclama que nem
é preciso uma classe revolucionária existente: a mera força da propaganda cria
a classe revolucionária do nada.
Uma teoria que, para conservar
seu prestígio, tem de ser levada a dizer o contrário do que dizia não é, com
efeito, teoria nenhuma: é apenas o símbolo unificador de um grupo de interesses
heterogêneos, que se define, se indefine e se redefine conforme bem lhe
interessa no momento, com a inventividade insana dos oportunistas, dos
mitômanos e dos criminosos pegos em flagrante.
Título e Texto: Olavo de
Carvalho, 12-09-2011. Publicado originalmente no site “Mídia Sem Máscara”.
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