quinta-feira, 23 de maio de 2013

Decência em Democracia

Ricardo Sardo Maio  
Há dias, um “jornal” escrevia na primeira página “dizem que ele bateu na mulher”, texto que vinha acompanhado de uma foto do primeiro-ministro Passos Coelho. E escrevo jornal entre aspas pois aquele título pode ser muita coisa mas jornalismo certamente que não é.


Há muito que defendo que a imagem, a honra e o bom nome de figuras públicas merece o mesmo tratamento que todas as outras. Em vários processos de difamação intentados por figuras públicas, sobretudo políticos, contra órgãos de comunicação social, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, apesar de serem figuras públicas e, como tal, estarem sujeitas ao escrutínio público, os seus direitos (à imagem, à honra e ao bom nome) não deixam de ser válidos. No entanto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem um entendimento diferente. Apesar de defender estes direitos, considera que, perante o direito de liberdade de imprensa e o direito à informação, aqueles são afastados em detrimento destes. Se em teoria podemos aceitar esta posição, a verdade é que, na prática, isto significa que os mídia podem escrever quase tudo, mesmo em situações que levantem fundadas dúvidas sobre a forma como obteram a informação veiculada e sobre se acreditam naquilo que publicam. Algo semelhante sucede por causa de colunas de opinião. E se uma coisa é publicar factos ou informação que obtemos, outra bem diferente é escrever o que nos vai na mente ou o que pensamos sobre determinado assunto ou pessoa. As regras da comunicação social não se aplicam aqui, pois não se trata de jornalismo mas de opinião pessoal. Não existe um direito de informar, mas apenas de se expressar, de opinar. Nenhum direito é absoluto. Todos têm limites.

O antecessor de Passos Coelho, José Sócrates, também foi alvo de notícias injuriosas e artigos de opinião insultuosos. Os Tribunais consideraram, num desses casos, que comparar Sócrates a Cicciolina, insinuando que o antigo primeiro-ministro era como que uma prostituta da política, era legítimo. Como, em muitos outros casos, levantar dúvidas sobre a ideoneidade de outros políticos (de várias cores partidárias) sem respeitar as regras deontológicas do jornalismo (verificação das fontes, se os factos correspondem à verdade, dar direito de resposta do visado antes da publicação da “notícia”, etc) foi considerado lícito, ao abrigo da liberdade de informação. Curioso é que, em situações semelhantes ou análogas (expressões semelhantes, por exemplo), os tribunais já tiveram entendimento jurídico diferente. O facto de os visados das expressões serem magistrados pode, claro, não passar de mera coincidência.

Dizem que ele bateu na mulher”. A publicação de um rumor, de um “diz que disse”, sem qualquer respeito pelas mais básicas regras deontológicas do jornalismo, leva, inevitavelmente, a uma degradação do debate público e do próprio jornalismo. As pessoas deixam de acreditar no que os “jornais” publicam, pois podem não passar de especulações ou insinuações. No futebol sucede o mesmo, em particular com as supostas contratações de jogadores, transferências, etc. Muitas “notícias” não passam de rumores, invenções ou, em alguns casos, de “fretes” jornalísticos, de favores com segundos interesses.

O boato é títpico de um estado autoritário, frágil e fraco. Em Democracia, a verdade, a isenção, o primado dos factos e o respeito pelas regras são cruciais para uma comunicação social credível e um debate público e político são. Em Democracia, todos se devem reger pela decência, bom senso e respeito. Em Portugal, infelizmente, isso está longe de se verificar. Utiliza-se um veículo de comunicação supostamente isento, imparcial e sério, mas se manipular a verdade, os factos e, consequentemente, a opinião do público sobre determinadas figuras públicas e políticos. Há muito que isto acontece com impunidade e apoio de quem deveria estar na frente da linha de combate contra a mentira, nomeadamente pessoas ligadas à Justiça, como magistrados, advogados, funcionários judiciais ou agentes da autoridade. É triste, mas é o que temos. E teremos enquanto continuarmos todos calados e sem nada fazer em defesa da decência. Porque sem decência a Democracia será sempre fraca. E a nossa é fraca, em favor de alguns “fortes” que por aí andam.
Título e Texto: Ricardo Sardo Maio, LocalPT, 23-05-2013

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