João Miguel Tavares
Como sempre acontece com
atentados terroristas, é só esperar que os corpos arrefeçam para os comentários
idiotas e autoculpabilizantes começarem a aparecer. A estrutura repete-se: há
uma primeira frase pesarosa, a dizer que aquilo não se faz, e logo de seguida
vem um “mas”, um “contudo”, um “no entanto”. Foi assim no 11 de Setembro; não
poderia deixar de ser assim com o massacre do Charlie Hebdo.
Com esta diferença: em 2001 o
Twitter ainda não tinha sido inventado, e em 2015 ele é terreno fértil para
espantosas concentrações de idiotice em 140 caracteres. Ana Gomes tem-se
destacado nesse campo. Começou logo a 7 de Janeiro, com uma ligação entre o
terrorismo e a austeridade, e continuou com a nova capa do Charlie Hebdo:
“Porquê insistir na representação do profeta, que se sabe ofender os
muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome.” É certo que poderíamos fazer
um desenho a explicar o porquê de “insistir na representação do profeta”, mas
não vale a pena. Até porque Ana Gomes é o mais próximo que temos de um Charlie
Hebdo português: o que lhe sai da boca é exagerado e muitas vezes não faz
qualquer sentido, mas é corajosa e dá cor e diversidade à nossa democracia. Há
que valorizar isso.
****
De um campeonato muito
diferente são os textos de Boaventura Sousa Santos [foto] , o Noam Chomsky do
Mondego. Alegadamente, ele pensa, produz obra e tem uma vasta corte de
seguidores. Ontem, decidiu dar à estampa um texto no PÚBLICO intitulado Charlie Hebdo: uma reflexão difícil – e ponham difícil nisso. Para
Boaventura, o mundo ocidental é uma acumulação de miseráveis defeitos, a sua
decadência passeia-se pelas ruas e a Terceira Guerra Mundial está à porta, por
sua inteira culpa. Fixe, fixe, é viver na Venezuela e na Bolívia.
Mas o pior não é isso: é a sua
argumentação vir acompanhada de uma dose de demagogia e de sonsice capaz de dar
cabo dos melhores estômagos. Um professor doutor perguntar porque é que 37
jovens mortos no Iémen não causam “a mesma repulsa” que o ataque ao Charlie
Hebdo só pode ser piada. Ao fim de décadas de pesquisa sociológica,
Boaventura ainda não descobriu que ele pode chorar mais pela morte do seu cão
do que pela morte de mil chineses, sem que isso signifique que o seu cão valha
mais do que mil chineses. E também não percebeu que a repulsa se deve tanto à
morte dos caricaturistas como ao atentado à liberdade de expressão – e por isso
a tragédia no supermercado judeu não nos marcou da mesma forma.
Ou será que Boaventura sabe
isto? Eu acho que sabe. Simplesmente, é mais prático enviesar argumentos para
poderem encaixar no seu “no entanto”. Até porque é um “no entanto” e peras.
Pergunta ele: “A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural,
onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de
extremismo?” Que caraças, andou a esquerda tão cara a Boaventura a morrer
durante séculos pelo direito a gozar com a religião, para agora ele achar que
atribuir uma cara ao profeta em 2015 é uma actividade radical. Mas ele está
certo quando escreve: “Estamos perante um choque de fanatismos.” Só é pena
Boaventura não vislumbrar o seu – um fanatismo multicultural onde a expressão
“valores ocidentais” é posta entre aspas e toda a culpa pelas dificuldades de
integração e pelo crescimento do jihadismo é atribuída às políticas do
Ocidente. O problema é que são estes fanáticos multiculturais que acabam por
empurrar muita gente moderada para os braços da extrema-direita. Boaventura e
Marine são duas faces da mesma moeda.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público,
15-1-2015
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