sexta-feira, 3 de julho de 2015

A culpa não é dos líderes europeus

João Marques de Almeida

A Europa está a pagar um preço elevado por erros cometidos nos anos 1990. Mas ninguém gosta de falar disso: a narrativa politicamente correta elogia o suposto “europeísmo” de Kohl, Mitterrand e Delors

Não há artigo sobre a Grécia, ou a crise dos imigrantes em Itália que não acabe com críticas e ataques aos líderes europeus. Invariavelmente, são “egoístas”, “fracos”, “populistas”, e “não entendem a ideia de solidariedade europeia”. Há várias razões para explicar o tom crítico. Desde logo, em Portugal, a maioria dos cronistas acredita que o seu papel é atacar o poder e os governos. Se não o fizerem sentem-se como aqueles avançados que chegam ao fim do jogo e não marcaram um golo. Escrever em público exige atacar os líderes políticos, e quem não o faz ou, pior, comete o pecado de defender o governo “está ao serviço do poder” ou “quer um tacho” (normalmente, as críticas dizem muito sobre quem as faz). Em Portugal, quase toda a gente que escreve em público tem o pavor de ser acusado de estar aliado ao poder.

Em segundo lugar, a “Europa” deixou de enviar “envelopes de dinheiro” e agora exige que se respeitem as regras que todos assinaram. A “solidariedade” significa apenas dar dinheiro. Mas nunca o respeito pelas regras que acordamos com os nossos parceiros. Curiosamente, a maioria dos que atacam agora a Europa, defendeu o Tratado de Maastricht e a entrada de Portugal no Euro. Será que leram os Tratados com atenção? Será que refletiram devidamente nas consequências do que defenderam? Será que consideraram a importância de se respeitar as regras acordadas e assinadas? Alguém obrigou Portugal a aderir ao Euro? Ou achavam que as regras eram irrelevantes? Sei muito bem que a Alemanha e a França foram dos primeiros a violar as regras do Euro. Na altura, critiquei os governos de Schroeder e de Chirac (mais do que uma vez e por várias razões). Mas outros, que passam agora a vida a criticar Merkel, mantiveram-se calados perante os abusos franco-alemães.

A Europa está a pagar um preço muito elevado por erros cometidos durante a década de 1990. Mas quase ninguém gosta de falar disso. Pelo contrário, a narrativa politicamente correta elogia o suposto “europeísmo” de Kohl, Mitterrand e Delors. Esse “europeísmo” não foi mais do que defender os interesses nacionais da Alemanha e da França, no caso dos dois primeiros, e dos dois países, no caso do último. Num momento de enorme franqueza, um dia um velho funcionário da Comissão Europeia (daqueles que nunca perdeu a lucidez apesar de décadas em Bruxelas) disse-me: “O sucesso e a popularidade de Delors resultou de três princípios: no essencial, fazer sempre o que Paris e Bona (depois Berlim) queriam: atacar o Reino Unido e enviar dinheiro para os países do sul da Europa.”
Entendo perfeitamente que Kohl e Mitterrand tenham defendido os interesses da Alemanha e da França, não esperaria outra coisa, nem os critico por isso. Além do mais, enfrentaram um desafio geopolítico tremendo: a reunificação da Alemanha; o acontecimento mais importante da História europeia desde 1945. O problema foi o modo como permitiram – e de certo modo ajudaram – que se transformasse a integração europeia numa ideologia política, senão mesmo numa utopia.

Essa utopia europeia assentou num idealismo quase ilimitado, em que tudo parecia possível na Europa. Não havia limites às despesas com políticas sociais, para satisfazer eleitorados; e não foi só na Grécia; foi também na Alemanha, na Suécia, em França, no Reino Unido, enfim em toda a Europa. Em privado, muitos sabiam que a situação era insustentável, mas nunca quiseram dizer ao eleitorado a quem tinham que fazer promessas de quatro em quatro anos. No plano externo, a Europa seria capaz de quase tudo, desde democratizar a Rússia, “ocidentalizar” a Turquia e acabar com a “hegemonia” dos Estados Unidos.

Este triunfalismo europeu retirou lucidez aos líderes políticos, sentido da história, e humildade perante a realidade (o que é extraordinário para políticos com a história de Kohl e de Mitterrand). Quando se passa quase duas décadas a ignorar a realidade, ela explode com fúria. Em 2010, as contradições económicas, sociais e políticas explodiram na Europa.

A crença no progresso inevitável da integração europeia foi o segundo grande pecado da utopia construída na década de 90. Foi resumida por uma das frases mais infelizes alguma vez dita por um político: a “Europa é como uma bicicleta; se parar, cai” (Kohl). A ideia de que só há um caminho – “an ever closer Union” – contribuiu, e muito, para os problemas de legitimidade política que a União Europeia hoje enfrenta.

Na história e na política, nada é inevitável. A União Europeia e o Euro podem acabar. Continuo a achar que seria uma tragédia para a Europa se isso acontecesse. Mas a “tese da bicicleta” chegou ao fim, deixou de ser válida e legitima. A Europa perdeu o poder económico e político necessários para se definir a si própria como o “destino da história.” A União Europeia terá que ser mais realista e consciente dos limites do seu poder. E a loucura da corrida em frente até ao “fim da história”, como mostra a assinatura de quatro Tratados entre 1992 e 2003 (QUATRO TRATADOS), acabou.

Ao contrário da maioria dos cronistas portugueses, respeito e admiro o esforço de muitos dos atuais líderes europeus. Herdaram uma utopia política que não resistiu ao teste da realidade. Gostariam de ter outros assuntos para discutir e resolver? Claro que gostariam. Têm outra opção? Claro que não. São culpados pelas ilusões acumuladas durante duas décadas? Obviamente que não. Mitterrand dizia que “era necessário dar tempo ao tempo.” O tempo chegou.

A última lição grega refere-se à “austeridade”. A Grécia está a demonstrar que a política do governo português constitui a melhor maneira de acabar com a “austeridade”. A tentativa de fazer o oposto apenas provoca mais “austeridade”, como os gregos já estão a perceber. Em Portugal, o voto contra a “austeridade” é o voto no atual governo. Para muitos, o que digo pode parecer uma contradição.

Mas não é. O problema está no uso da palavra “austeridade”. Só mesmo quem acredita na possibilidade de viver do dinheiro dos outros é que poderia chamar “austeridade” ao esforço de ajustamento entre as despesas e as receitas. Em Portugal não houve “austeridade”. O que aconteceu foi o fim da ilusão e o encontro com a realidade. O governo grego e o PS continuam a rejeitar a realidade. Se os portugueses aprenderam durante os últimos quatro anos que a ilusão é muito mais cara do que a realidade, este Governo será reeleito. Esta eleição será uma eleição sobre os portugueses, sobre o que aprenderam nos últimos anos, sobre o modo como enfrentam a realidade e sobre o modo como se deixam tentar por ilusões.
Título e Texto: João Marques Almeida, Observador, 3-7-2015

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