João Marques de Almeida
A Europa está a pagar um preço
elevado por erros cometidos nos anos 1990. Mas ninguém gosta de falar disso: a
narrativa politicamente correta elogia o suposto “europeísmo” de Kohl,
Mitterrand e Delors
Não há artigo sobre a Grécia,
ou a crise dos imigrantes em Itália que não acabe com críticas e ataques aos
líderes europeus. Invariavelmente, são “egoístas”, “fracos”, “populistas”, e
“não entendem a ideia de solidariedade europeia”. Há várias razões para explicar
o tom crítico. Desde logo, em Portugal, a maioria dos cronistas acredita que o
seu papel é atacar o poder e os governos. Se não o fizerem sentem-se como
aqueles avançados que chegam ao fim do jogo e não marcaram um golo. Escrever em
público exige atacar os líderes políticos, e quem não o faz ou, pior, comete o
pecado de defender o governo “está ao serviço do poder” ou “quer um tacho”
(normalmente, as críticas dizem muito sobre quem as faz). Em Portugal, quase
toda a gente que escreve em público tem o pavor de ser acusado de estar aliado
ao poder.
Em segundo lugar, a “Europa”
deixou de enviar “envelopes de dinheiro” e agora exige que se respeitem as
regras que todos assinaram. A “solidariedade” significa apenas dar dinheiro.
Mas nunca o respeito pelas regras que acordamos com os nossos parceiros.
Curiosamente, a maioria dos que atacam agora a Europa, defendeu o Tratado de
Maastricht e a entrada de Portugal no Euro. Será que leram os Tratados com
atenção? Será que refletiram devidamente nas consequências do que defenderam?
Será que consideraram a importância de se respeitar as regras acordadas e
assinadas? Alguém obrigou Portugal a aderir ao Euro? Ou achavam que as regras
eram irrelevantes? Sei muito bem que a Alemanha e a França foram dos primeiros
a violar as regras do Euro. Na altura, critiquei os governos de Schroeder e de
Chirac (mais do que uma vez e por várias razões). Mas outros, que passam agora
a vida a criticar Merkel, mantiveram-se calados perante os abusos
franco-alemães.
A Europa está a pagar um preço
muito elevado por erros cometidos durante a década de 1990. Mas quase ninguém
gosta de falar disso. Pelo contrário, a narrativa politicamente correta elogia
o suposto “europeísmo” de Kohl, Mitterrand e Delors. Esse “europeísmo” não foi
mais do que defender os interesses nacionais da Alemanha e da França, no caso
dos dois primeiros, e dos dois países, no caso do último. Num momento de enorme
franqueza, um dia um velho funcionário da Comissão Europeia (daqueles que nunca
perdeu a lucidez apesar de décadas em Bruxelas) disse-me: “O sucesso e a
popularidade de Delors resultou de três princípios: no essencial, fazer sempre
o que Paris e Bona (depois Berlim) queriam: atacar o Reino Unido e enviar
dinheiro para os países do sul da Europa.”
Entendo perfeitamente que Kohl
e Mitterrand tenham defendido os interesses da Alemanha e da França, não
esperaria outra coisa, nem os critico por isso. Além do mais, enfrentaram um
desafio geopolítico tremendo: a reunificação da Alemanha; o acontecimento mais
importante da História europeia desde 1945. O problema foi o modo como
permitiram – e de certo modo ajudaram – que se transformasse a integração
europeia numa ideologia política, senão mesmo numa utopia.
Essa utopia europeia assentou
num idealismo quase ilimitado, em que tudo parecia possível na Europa. Não
havia limites às despesas com políticas sociais, para satisfazer eleitorados; e
não foi só na Grécia; foi também na Alemanha, na Suécia, em França, no Reino
Unido, enfim em toda a Europa. Em privado, muitos sabiam que a situação era
insustentável, mas nunca quiseram dizer ao eleitorado a quem tinham que fazer
promessas de quatro em quatro anos. No plano externo, a Europa seria capaz de
quase tudo, desde democratizar a Rússia, “ocidentalizar” a Turquia e acabar com
a “hegemonia” dos Estados Unidos.
Este triunfalismo europeu
retirou lucidez aos líderes políticos, sentido da história, e humildade perante
a realidade (o que é extraordinário para políticos com a história de Kohl e de
Mitterrand). Quando se passa quase duas décadas a ignorar a realidade, ela
explode com fúria. Em 2010, as contradições económicas, sociais e políticas
explodiram na Europa.
A crença no progresso
inevitável da integração europeia foi o segundo grande pecado da utopia
construída na década de 90. Foi resumida por uma das frases mais infelizes
alguma vez dita por um político: a “Europa é como uma bicicleta; se parar, cai”
(Kohl). A ideia de que só há um caminho – “an ever closer Union” – contribuiu,
e muito, para os problemas de legitimidade política que a União Europeia hoje
enfrenta.
Na história e na política,
nada é inevitável. A União Europeia e o Euro podem acabar. Continuo a achar que
seria uma tragédia para a Europa se isso acontecesse. Mas a “tese da bicicleta”
chegou ao fim, deixou de ser válida e legitima. A Europa perdeu o poder
económico e político necessários para se definir a si própria como o “destino
da história.” A União Europeia terá que ser mais realista e consciente dos
limites do seu poder. E a loucura da corrida em frente até ao “fim da
história”, como mostra a assinatura de quatro Tratados entre 1992 e 2003
(QUATRO TRATADOS), acabou.
Ao contrário da maioria dos
cronistas portugueses, respeito e admiro o esforço de muitos dos atuais líderes
europeus. Herdaram uma utopia política que não resistiu ao teste da realidade.
Gostariam de ter outros assuntos para discutir e resolver? Claro que gostariam.
Têm outra opção? Claro que não. São culpados pelas ilusões acumuladas durante
duas décadas? Obviamente que não. Mitterrand dizia que “era necessário dar
tempo ao tempo.” O tempo chegou.
A última lição grega refere-se
à “austeridade”. A Grécia está a demonstrar que a política do governo português
constitui a melhor maneira de acabar com a “austeridade”. A tentativa de fazer
o oposto apenas provoca mais “austeridade”, como os gregos já estão a perceber.
Em Portugal, o voto contra a “austeridade” é o voto no atual governo. Para
muitos, o que digo pode parecer uma contradição.
Mas não é. O problema está no
uso da palavra “austeridade”. Só mesmo quem acredita na possibilidade de viver
do dinheiro dos outros é que poderia chamar “austeridade” ao esforço de
ajustamento entre as despesas e as receitas. Em Portugal não houve “austeridade”.
O que aconteceu foi o fim da ilusão e o encontro com a realidade. O governo
grego e o PS continuam a rejeitar a realidade. Se os portugueses aprenderam
durante os últimos quatro anos que a ilusão é muito mais cara do que a
realidade, este Governo será reeleito. Esta eleição será uma eleição sobre
os portugueses, sobre o que aprenderam nos últimos anos, sobre o modo como
enfrentam a realidade e sobre o modo como se deixam tentar por ilusões.
Título e Texto: João Marques Almeida, Observador,
3-7-2015
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