Paulo Tunhas
Se há coisa que a situação
grega mostrou com toda a evidência é que está na péssima natureza do pior poder
sempre piorar. Por isso fico muito irritado com os entusiasmos que o “não”
provocou.
Tenho falado algumas vezes,
por causa da crise da Grécia, com uma valorosa cidadã de Atenas de quem sou
amigo há vinte e cinco anos. Não consigo contar as discussões políticas que
tivemos durante todos esses anos, mas posso dar uma ideia geral. Por regra, ela
defendia veementemente os direitos dos povos a uma acumulação infinita de
vitórias sobre o Mal, simbolizado no contexto presente pelo capitalismo, e eu
exibia umas vagas reticências à tese. Por mais vagas que fossem as reticências,
bastavam sempre, é claro, para me colocar do lado do Mal, uma condenação que eu
fui pouco a pouco interiorizando, até chegar onde cheguei.
Mas, por estes dias, ela anda
a oscilar perigosamente para o meu lado. Votou “sim” no referendo e pareceu-me
meio assustada com o caminho que as coisas andam a tomar. É compreensível. A
Grécia, por estes dias, não é o melhor lugar do mundo para viver, sobretudo se
se tiver a seu cargo um filho em idade escolar. E pode, como toda a gente sabe,
ficar ainda muito pior. Aliás, se há coisa que a situação grega mostrou com
toda a evidência é que, por assim dizer, está na péssima natureza do pior poder
sempre piorar.
Esta e outras razões levam-me
a ficar muito irritado (surpreendido não) com os entusiasmos que o “não”
provocou em vários lugares, nomeadamente em Portugal. A quantidade de
argumentos estapafúrdios que se utilizaram para o desejar, e, depois, para o
celebrar, não se conta. E o entusiasmo em si mesmo tem algo de brutal e
irracional, se bem que disfarçado das cores costumeiras das belas esperanças.
Parece coisa de iluminados que vêem um caminho sublime para a redenção. Quando,
na verdade, o que me parece é que, para utilizar uma imagem de John Locke, não
conseguem ver nada para além do fumo das suas próprias chaminés. E são chaminés
que produzem muito fumo.
Locke é, de resto, um dos
autores que mais profundamente escreveu sobre o entusiasmo. Tal como no que
respeita à tolerância, o contexto da discussão de Locke é essencialmente
religioso. Mas o que se encontra escrito no capítulo dezanove do quarto livro
do Ensaio sobre o entendimento humano deixa-se facilmente transportar para o
plano estritamente político. E vale a pena rapidamente lembrá-lo.
O entusiasmo é uma espécie de
fundamento para o assentimento que dispensa qualquer prova, e, portanto, uma
maneira maravilhosamente fácil para os seres humanos estabelecerem as suas
opiniões, que contrasta com o entediante labor do raciocínio. Esta vantagem do
entusiasmo é indisputável, e dela se deduz sem dificuldade uma outra. Um homem
possuído de entusiasmo não precisa, como é bom de ver, de ouvir os outros.
Basta-lhe a luz secreta que o habita. Estamos no reino da “iluminação sem
investigação” e da “certeza sem prova e sem exame”. Mas, e aí está o pequeno
problema, a “firmeza da persuasão” não garante a verdade de nenhuma opinião.
Ora, ou muito me engano ou
andamos rodeados de entusiastas que correspondem na perfeição à descrição de
Locke. A quantidade de gente que fala e escreve, tomada de uma persuasão firme
e inabalável, sobre a justeza do “não” grego (e não vou entrar aqui nas muito
particulares características daquele referendo) é enorme. E há características
na argumentação entusiástica que, sendo condizentes com a caracterização
lockeana, a prolongam mesmo em vários sentidos.
A primeira tem a ver com os
princípios. O entusiasta funciona apenas com base em princípios que vê
maximamente representados na sua pessoa. As contingências do mundo passam-lhe,
por deformação profissional, ao lado. O que não encaixa nesses princípios
pertence necessariamente aos reinos do erro e da ilusão. Não há estádio médio
entre a luz e as trevas.
O que tem como consequência
que ao entusiasta não interessa vedadeiramente resolver problemas. Resolver
problemas só é possível se pusermos as mãos, por assim dizer, em tudo o que se
encontra entre a luz e as trevas, mesmo que o máximo que consigamos obter seja
uma luzinha pisca ou bruxuleante. Pisca ou bruxuleante, uma luzinha é melhor do
que a escuridão. Para o entusiasta não é assim. Ou luz inteira ou luz nenhuma.
Isto, por sua vez, revela uma
terceira característica do entusiasta. E essa característica é um efectivo
desinteresse pelo sofrimento das pessoas reais. O sofrimento só pode ser
minorado através dos cuidados de um trabalho que o entusiasta, na sua crença de
que a iluminação sem investigação é coisa bastante, nega na sua essência. O que
as pessoas sofrem no dia-a-dia permanece-lhe intrinsecamente desinteressante se
não puder ser resolvido por um acto de pura redenção. Uma revolução, por
exemplo.
Estas características do
entusiasmo foram-me lembradas por aquilo que
se tem dito em aplauso do “não” grego, mas elas não se manifestam, como
é óbvio, apenas neste caso. Uma das particularidades do entusiasmo como atitude
mental é ele se poder projectar livremente sobre um sem número de objectos
distintos, mantendo sempre o mesmo perfil e a mesma intensidade. E não é
difícil a quem quer que seja que possua alguma memória lembrar-se de um vasto
número de objectos de que o entusiasmo por uma vez ou outra se apropriou. Com
resultados, quase sem excepção, muito maus.
A minha amiga ateniense anda a
passar as passas do Algarve à pala dos entusiastas de lá. Como é tudo menos
burra, vai aguentar. Sempre teve, de resto, uma mania de ser invencível que, em
tempos passados, me provocou algum desconforto. Dos entusiastas de cá, eu tenho
menos medo. Mas, já agora, não me vá dar de repente o badagaio e eu ir desta
para melhor sem ter dito pelo menos uma verdade absoluta, aproveito para
enunciar, também eu, um princípio indisputável, que não são eles os únicos a
possuí-los: fere, magoa, dói e aterra ter de viver a vida cercado por
entusiastas que confundem o fumo das suas chaminés com a verdade sobre a
humanidade.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
9-7-2015
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