Olavo de Carvalho
Que eu saiba, o único invejoso
assumido da literatura universal é O sobrinho de Rameau, de Diderot,
personagem caricato demais para ser real. Mesmo O homem do subterrâneo
de Dostoiévski só se exprime no papel porque acredita que não será lido.
Agente confessa ódio,
humilhação, medo, ciúme, tristeza, cobiça. Inveja, nunca. A inveja admitida se
anularia no ato, transmutando-se em competição franca ou em desistência
resignada. A inveja é o único sentimento que se alimenta de sua própria
ocultação.
O homem torna-se invejoso
quando desiste intimamente dos bens que cobiçava, por acreditar, em segredo,
que não os merece. O que lhe dói não é a falta dos bens, mas do mérito. Daí sua
compulsão de depreciar esses bens, de destruí-los ou de substitui-los por
simulacros miseráveis, fingindo julgá-los mais valiosos que os originais. É
precisamente nas dissimulações que a inveja se revela de maneira mais clara.
As formas de dissimulação são
muitas, mas a inveja essencial, primordial, tem por objeto os bens espirituais,
porque são mais abstratos e impalpáveis, mas aptos a despertar no invejoso
aquele sentimento de exclusão irremediável que faz dele, em vida, um condenado
ao inferno.
Riqueza material e poder
mundano nunca são tão distantes, tão incompreensíveis, quanto a amizade de Abel
com Deus, que leva Caim ao desespero, ou o misterioso dom do gênio criador, que
humilha as inteligências medíocres mesmo quando bem-sucedidas social e
economicamente. Por trás da inveja vulgar há sempre inveja espiritual.
Mas a inveja espiritual muda de motivo conforme os tempos. A época moderna, explica Lionel trilling em Beyond Culture, “é a primeira em que muitos homens aspiram a altas realizações nas artes e, na sua frustração, formam uma classe despossuída, um proletariado do espírito.”
Para novos motivos, novas
dissimulações. O “proletariado do espírito” é, como já observava Otto Maria
Carpeaux em A cinza do purgatório, a classe revolucionária por
excelência.
Desde a revolução Francesa, os
movimentos ideológicos de massa sempre recrutaram o grosso de seus líderes da
multidão dos semi-intelectuais ressentidos. Afastados do trabalho manual pela
instrução que receberam, separados da realização nas letras e nas artes pela
sua mediocridade endêmica, que lhes restava? A revolta.
Mas uma revolta em nome da inépcia se autodesmoralizaria no ato. O único que a confessou, com candura suicida, foi justamente o “sobrinho de Rameau”. Como que advertidos por essa cruel caricatura, os demais notaram que era preciso a camuflagem de um pretexto nobre. Para isso serviram os pobres e oprimidos.
A facilidade com que todo revolucionário
derrama lágrimas de piedade por eles enquanto luta contra o establishment,
passando a oprimi-los tão logo sobe ao poder, só se explica pelo fato de que
não era o sofrimento material deles que o comovia, mas apenas o seu próprio
sentimento psíquico.
O direito dos pobres é a poção
alucinógena com que o intelectual ativista se inebria de ilusões quanto aos
motivos da sua conduta. E é o próprio drama interior da inveja espiritual que
dá ao seu discurso aquela hipnótica intensidade emocional que W. B. Yeats
notava nos apóstolos do pior.* Nenhum sentimento autêntico se expressa com
furor comparável ao da encenação histérica.
Por ironia, o que deu origem
ao grand guignol das revoluções modernas não foi a exclusão, mas a
inclusão: foi quando as portas das atividades culturais superiores se abriram para
as massas de classe média e pobre que, fatalmente, o número de frustrados das
letras se multiplicou por milhões.
A “rebelião das massas” a que
se referia José Ortega y Gasset** consistia precisamente nisso: não na ascensão
dos pobres à cultura superior, mas na concomitante impossibilidade de
democratizar o gênio.
A inveja resultante gerava
ódio aos próprios bens recém-conquistados, que pareciam tanto mais inacessíveis
às almas quanto mais democratizados no mundo: daí o clamor geral contra a
“cultura da elite”, justamente no momento em que já não era privilégio da
elite.
Ortega, de maneira tão injusta
quanto compreensível, foi por isso acusado de elitista. Mas Eric Hoffer,
operário elevado por mérito próprio ao nível de grande intelectual, também
escreveu páginas penetrantes sobre a psicologia dos ativistas,
“pseudointelectuais tagarelas e cheios de pose… Vivendo vidas estéreis e
inúteis, não possuem autoconfiança e autorrespeito, e anseiam pela ilusão de
peso e importância.”*
Por isso, leitores, não estranhem
quando virem, na liderança dos “movimentos sociais”, cidadãos de classe média e
alta, diplomados pelas universidades mais caras, como é o caso, aliás, do
próprio senhor João Pedro Stedile, economista da PUC-RS.
Se esses movimentos fossem
autenticamente de pobres, eles se contentariam com o atendimento de suas reivindicações
nominais: um pedaço de terra, uma casa, ferramentas de trabalho. Mas o vazio no
coração do intelectual ativista, o buraco negro da inveja espiritual, é tão
profundo quanto o abismo do inferno. Nem o mundo inteiro pode preenchê-lo.
Por isso a demanda razoável
dos bens mais simples da vida, esperança inicial da massa dos liderados, acaba
sempre se ampliando, por iniciativa dos líderes, na exigência louca de uma
transformação total da realidade, de uma mutação revolucionária do mundo.
E, no caos da revolução, as esperanças dos pobres acabam sempre sacrificadas à glória dos intelectuais ativistas.
* Ver “The Second Coming e “The Leaders of the Crowd” em Michael Robartes and The Dancer, 1921.** La Rebelión de las Masas, 1928.
Título e Texto: Olavo de Carvalho, Folha de S. Paulo, 26-8-2003, in “o mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, páginas 373/375
Digitação: JP, 10-5-2021
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