sexta-feira, 2 de julho de 2021

[Aparecido rasga o verbo] O morto em suspenso

Aparecido Raimundo de Souza

O SEU JOSÉ PIRLIMPIMPIM, na casa dos noventa e oito, todas as tardes, antes do jantar ficar pronto, costumava se sentar na porta de sua residência.  Ali ele fumava o seu cachimbo, bebia o seu cafezinho, comprimentava os vizinhos passantes (indo ou vindo), que lhe dirigiam expansivas e despretenciosas boas tardes ou efusivas e afetuosas boas noites. Na maioria das vezes o idoso dormia, soltava uns traques barulhentos, roncava alto, a boca aberta e, dela, uma baba viscosa escapando pelo canto, deixando molhado o queixo como torneira mal fechada.

Mergulhado nesta madorra, entrelaçada  entre o sono e a vigília de se manter desperto, a cabeça pesada dava repetidos mergulhos no ar. Seu José Pirlimpimpim, todavia,  não atinava que a sua bermuda jeans surrada e batida, além de bem carcomida, se fazia desabotoada, justamente na altura da braguilha e que, de dentro dela, exposta, à visitação dos curiosos, uma boa parte de seus órgãos genitais desfrutava da tarde mormacenta. Os moradores que cruzavam —, ora vindo ou indo —, riam dele,  gargalhavam, faziam piadas sem graça. Entretanto, nada diziam, nada esclareciam.

Talvez em homenagem, à  sua idade avançada ou, lado outro, pelo medo de levarem uma bronca, ou ainda, em respeito aos seus ralos cabelos cor de neve. O fato é que tal cena, deixava patente que, naquele estado agravoso da idade, o infeliz, coitado, não se dava ao luxo, ou ao trabalho de verificar ao sair das necessidades fisiológicas, se se recompora, como deveria, não permitindo que as suas pudicícias ficassem  reveladas  aos  esbugalhos dos transeuntes. 

Neste quadro de cores destoadas, a maioria  que se deparava com a sua fraqueza, nutria plena consciência de que ele, talvez, se deslembresse de cuidar melhor das suas intimidades por mero desamparo do esquecimento. Coisa da idade. Ademais, o homem com os pés quase às portas dos cem, fato notório, perdera, de tudo, o tino do que seria certo ou errado, ou o que se fazia proibido e feio aos olhos da sociedade. De todos os becos e desvãos daquele humilde e apagado paraíso, obumbrado e quase no meio do nada, sempre fora, o seu José Pirlimpimpim, um sujeito reto e honesto, imparcial, íntegro e  amigo de todos.

Pessoa de modos imbatíveis e inquestionáveis. Ninguém, em resumo, nos cafundosos daquele vilarejo bucólico e pastoril, de pouco mais de dois mil habitantes, soltaria a lingua para dizer um tantinho assim que fosse do seu decoro e  da sua fiel e briosa meritoriedade. Em verdade, as suas maneiras desleixadas, se fazia saliente por conta da cabeça fraca, por vias oriundadas da negligência e do desapurado e da própria pessoinha não atinar sobriamente com os modos respeitosos que todos estes anos pontilharam a sua vida pública.

Seu José Pirlimpimpim, à biografia inteira, se dedicou, de corpo e alma, à profissão de farmacêutico prático da localidade, cargo que deixou a menos de uma década, aos cuidados de seu único filho, o doutor Zibóreo Pirlimpimpim, formado em medicina, em São Paulo com especialização na Universidade de Oxford. Em decorrência da caduquice do pai, se viu, seu pimogênito, na obrigação de deixar a paulicéia desvairada e se colocar frenteado na direção da farmácia que ele, o pai, tocara a vida inteira, drogaria herdada, por sua vez, se seu avô Cazuza Pirlimpimpim.

Para seu José Pirlimpimpim, a velhice, ao tempo em que chegava sorrateira e destruidora, a goles poucos  também  comia pelas beiradas, a sua saúde, o seu tino, as demonstrações  de prudência, bem ainda o senso de educação e a postura, fazendo com que o avanço dos anos nos costados lhe deixasse olvidado e aos reveses de um passado que não voltaria jamais. Numa dessas vindas do velho José Pirlimpimpim, para seu posto e lugar de sempre, de repente se viu com vontade de ir ao banheiro fazer as suas necessidades mais prementes.

Ao voltar, veio com as coisas de fora. Sequer pensou em se recompor, ou melhor, ao sair do banheiro, nem se recordou  que as suas genitálias estavam de fora. Neste interrégno, a adolescente Veveta, de vinte anos, professora da escola pública local e filha do doutor Cantagalo, dentista cirurgião do povoado, regressava da escola onde ministrava aulas. Ao passar em frente dos acomodos do seu José Pirlimpimpim, numa olhada inocente, sem maiores intenções, capturou os baixos mijatórios do ilustre anoso completamente soltos e pior, às evidentes demostrações de não terem sido guardados com o devido esmêro. 

Penalizada e sobretudo envergonhada, usando de toda a educação trazida de berço, estancou os passos e, num papo  reto, recheado de boa retórica criativa, avisou ao longevo o que ele não percebia estar servindo de base para as chocatas e as pilhérias dos que passavam e seguiam em frente sorrindo e debochando.

— Seu José, boa tarde. Desculpe o que vou falar. Me perdoe. O senhor esqueceu de se abotoar. Um passarinho que estou vendo daqui, pode bater asas e fugir se o senhor não tramelar, ligeiro, a portinha da gaiola.

O notório e querido velhinho sorriu matreiro e, numa vozinha hesitante, agradeceu à jovenzinha e, após se recompor, as mãos oscilantementes tremebundadas, observou, todo sem graça e timidamente carregado de pejo.

— Boa tarde pra você também, minha criança. Nada a desculpar. Eu é que agradeço. Obrigado, de coração. Pronto. Tudo nos conformes. De resto, pode deixar que este pobre passarinho está há tempos, cativo. Não voa mais. Se fez, por demais, caduco e cansado, cego  e  literalmente morto. E quando nos deparamos  com um ser sem vida por perto, ainda que uma pobre rolinha, a gente costuma deixar uma janela aberta. O cheiro acre do falecido é forte demais e costuma impregnar todo o resto da casa.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 2-7-2021

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