terça-feira, 15 de junho de 2021

[Aparecido rasga o verbo] O chato

Aparecido Raimundo de Souza 

ALFINETE CARDOSO
pega o telefone e liga para um número que está sobre a mesinha de centro escrito num papelzinho de cigarro. Espera. Na quinta vez, atende uma voz feminina.
— Bom dia! Pois não?
— Bom dia. De onde fala?
— Que número o senhor ligou? 
— Este que estou falando com a senhora. 
— Senhorita. Tudo bem, senhor, mas qual é o número? 
— Minha linda, ai não é do jóquei club? 
— O senhor deve ter ligado errado. Aqui é da funerária Suba em Paz. O senhor queria ver o preço de uma urna mortuária? 
— Credo em cruz, moça. Funerária? Tô fora. Obrigado. 

Três minutos depois Alfinete Cardoso tenta novamente. Na pressa, e ligeiramente nervoso, pode, de fato, ter discado um número diferente ao invés do numeral correto. De novo, a espera. Na quinta vez é atendido. Desta feita, um homem de voz grossa se faz presente. 
— Bom dia? 
— Bom dia, meu amigo. Com quem falo, por favor? 
— Com quem o senhor quer falar? 
— Com o Durcaine do jóquei club. 
— Não, meu amigo. Aqui não é do jóquei club. E nem tem pessoa aqui com este nome. Como é mesmo o apelido do dito cujo que o senhor falou ai?
— Durcaine.
— Realmente o senhor se enganou...
— O que funciona ai?
— O inferninho do Camilinho... as melhores garotas da cidade.
— Meu Deus, não é possível. Inferninho do Camilinho?
— Sim senhor. Por que o espanto?
— Por nada, desculpe.

Impaciente, Alfinete Cardoso, faz nova tentativa. Aperta as teclas pausadamente, para não errar de novo. Mais uma espera embaraçosa o deixa meio que fora de si. Na oitava vez, atende uma mulher. Pela voz parece ser de uma idosa. Antes que ele diga alguma coisa, ela se antecipa e grita, ou melhor, explode.
— Até que enfim, seu cachorro. O que estava fazendo, que não me atendeu?
— Senhora, bom dia. Desculpe. Estou procurando pelo Durcaine...
— Não venha com esta história furada para meu lado. Estou esperando você com a carne para eu preparar e fazer os bifes. Aposto que parou no bar do Tadeu e encheu os chifres. Não se faça de idiota, nem mude a voz. Te conheço há sessenta anos. Durcaine, Durcaine, você vai ver o Durcaine quando chegar aqui. O pau de macarrão está te esperando... Aposto que o Tadeu tá dando... Vá lamber sabão. Traga a carne. Vai atrasar o almoço. Merda!
— Senhora... eu...
A furiosa senhorinha não se faz de rogada. Desliga nas barbas dele.

Alfinete Cardoso decide que tentará pela derradeira vez. Se não der certo desta, jogará o papelzinho fora e o tal do Durcaine, que vá para os quintos do inferno com o jóquei club e tudo mais que tiver direito. Ao selecionar as teclas marcando os números desejados, percebe que as suas mãos tremem bastante, em face, claro do nervosismo que o atormenta. Na décima segunda vez (quando pensava em interromper a ligação) atende uma criança.
— Oi... quem é?
— Sou eu... é vovô?
Alfinete Cardoso se abre num sorriso amarelo. Fala com certa ternura na voz.
— Como é seu nome?
— O meu?
— Sim!
— Lulu...
— Lulu, que nome bonito. A sua mamãe está?
— Acho que está...
— Chama ela pro titio.
— É vovô... vô, por que o senhor esta mudando a voz?
— Não, não é o vovô e nem estou mudando a voz.
— Quem é?
— Minha princesinha, chama a sua mamãe pro titio.
— É vovô. Vovô, o senhor está me fazendo de boba?
Alfinete Cardoso, mais irritado que poste fugindo de cachorro mijão, não desliga o telefone. Ele joga, ensandecido, o aparelho com toda força, em direção à parede. Por azar, acerta, em cheio, a cabeça da mulher dele, que atravessava, da cozinha para o quarto, justamente naquele instante.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 15-6-2021

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