sexta-feira, 11 de junho de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Negativos da mesma imagem

Aparecido Raimundo de Souza

NA AMPLA VARANDA
da Casa de Mãe Joana, Bernadete e Lucélia conversam sobre suas vidas adversas e infortunosas antes de caírem nos domínios da prostituição. De tempos em tempos, cessam seus relatos para atenderem a fregueses que chegam em busca dos prazeres mundanos. Quando voltam a se encontrar, o papo interrompido segue, adiante.
— Me fala, Lucélia — inquire Bernadete a certa altura. Como foi que você veio parar nesta vida de almas perdidas?

Lucélia:
— Tudo começou quando meu marido me deixou e foi embora com outra. Eu trabalhava no mercadinho do seu Carvão Apagado, de oito da manhã às vinte horas. Tinha apenas quinze minutos para engolir o almoço e voltar para o basquete. Às vezes comia, noutras tomava um lanche, até que, num sábado, me lembro como se fosse hoje, resolvi ir em casa. O estabelecimento do seu Carvão Apagado ficava a menos de dois minutos da minha residência...

Faz uma breve pausa e avança:
— Em lá chegando, amiga, que abri a porta, tomei um susto tremendo. O Derico, meu companheiro, havia ido embora e limpado tudo. Veio com um caminhão, e carregou a televisão, a geladeira, o fogão, a cama, o sofá... até as minhas roupas, ele fez questão de me deixar sem. Fui socorrida por dona Nair, uma vizinha, que morava em frente. Bondosamente me permitiu dormir em sua casa, por uma noite e, dia seguinte, me emprestou uma calça jeans e uma blusa.

Lucélia é acometida, entrementes, de um acesso de tosse. Em contínuo, espirra várias vezes e progride com a história:
— Para completar meu quadro lúgubre, o seu Carvão Apagado me mandou embora, porque meu querido marido, aquele maldito, antes de se escafeder de vez, passou no meu emprego, fez uma futrica danada com meu chefe e ele, de cabeça cheia, me botou na rua da amargura. Desgostosa, fui trabalhar nas sinaleiras —, ora fazendo malabarismos —, ora vendendo balas e pirulitos...

Novo ataque de tosse suspende o diálogo. Lucélia, todavia, se restabelesse e prossegue...
— Consegui juntar uma merreca. Com ela, comprei uma passagem e saí, de vez, de Maringá, minha terra natal e me mandei aqui para São Paulo. Sem conhecer viva alma, não consegui nada. Sabe o que é nada? Passei fome, frio, dormi na rua, morei na cracolândia e, para não ficar sem a maconha e outras drogas e, pior, para não seguir de barriga vazia, resolvi me prostituir. E aqui estou, com você a meu lado e as demais que, em piores condições que nós duas, às vezes passam horas sem arranjarem um programa legal e conseguirem levantar um troquinho. Bebete, a maldita cafetina, disse ontem, que vai mandar umas três ou quatro para a casa do Carvalho...

Bernadete:
— Meu Deus, Lucélia! Será que estamos incluídas na lista negra da megera da Bebete?
Lucélia:
— Não, Bernadete. Soube pelo Chico Bisonho, o sócio dela, que todas nós conhecemos, ‘vai rodar, em breve, ’ a Silvinha, a Beatriz, a Maria do Carmo e, talvez... a Ciléia... A rapaziada não gosta de nenhuma das garotas. Nós somos, modéstia à parte, as mais cotadas. Portanto... fica fria... por enquanto contamos com a sorte do nosso lado. Mudando de canoa pra barquinho, Bernadete e quanto a você... como acabou neste bordel sujo de periferia?

Bernadete:
— A minha história não difere muito da sua, Lucélia. Com exceção de nunca ter sido casada.
Lucélia:
— Noiva?
Bernadete:
— Nem noiva?
Lucélia:
— Amasiada?

Bernadete:
— Você passou longe...
Lucélia:
— Então foi o primeiro namoradinho que iniciou você nos caminhos do amor. Ludibriou a sua inocência, se fartou e, depois de se cansar, arranjou outra idiota e lhe deu um pé no traseiro?
Bernadete:
— Na verdade, Lucélia, eu tinha dezessete anos. Fui abusada pelo Nicanor, meu padrasto...

Lucélia:
— Seu padrasto?
Bernadete:
— Sim, minha amiga. O segundo marido de mamãe se chamava Nicanor. Ainda se chama. O verme peçonhento não morreu. Anda por ai. Quando me atacou, eu estava tomando banho. Ele chegou de mansinho, pé ante pé. O banheiro lá de casa não tinha porta, apenas uma cortina de plástico. Ele entrou, estava só de cueca. Eu pedi que se retirasse, mas ele não me deu ouvidos...

Bernadete se ve obrigada a uma breve pausa. De seus olhos, rolam ligeiras lágrimas em abundância:
—... De repente o despudorado arrancou a peça e, com ela nas mãos, partiu para cima de mim. Tentei gritar, me debati, esperneei, mordi o crápula nos braços, arranhei seu rosto, mas qual o quê. Forte e corpulento, não tive outra opção. O brutamontes me prendeu por trás e me dominou. Tampou a minha boca com a cueca e... nossa, que nojo, cueca suja... fedorenta... enfim, sem saída e indefesa, ele finalmente consumou o ato. Fez tudo o que tinha vontade...

Lucélia:
— E a sua mãe, Bernadete? Ela não estava em casa? Por que não veio lhe socorrer, ao menos bater no cara, espancar o vagabundo ou chamar os vizinhos para lincharem o condenado e depois telefonarem para a policia?

Bernadete:
— Mamãe estava por perto, sim, mas acredite, Lucélia, nada fez! Aliás, naquele instante do ataque nada podia contra o monstro...
Lucélia:
— E por que não?
Bernadete:
Porque ela não tinha como...

Lucélia:
— Diabos, Bernadete, não tinha como? Estou pasma, mal podendo acreditar que a sua mãe nada fez, sequer moveu uma palha. Ao menos, poderia ter partido para cima do tarado, lhe dado umas boas vassouradas, ou usado uma faca, jogado água quente nos cornos do pulha, sei lá... Pelo amor de Deus, me explica... Como a sua genitora pode deixar, me perdoe, pelo que vou dizer, como consentiu que o marido dela, seu padrasto desgraçasse você, desonrasse a sua vida e nada fizesse ou tentasse, para mandar o desequilibrado para a cadeia... ou. no pior dos mundos, para a vala?

Bernadete:
— Lucélia, me escuta. Por favor, me escuta. Não gosto de me lembrar deste caso. Sinto asco, repulsa, tenho vontade de vomitar as tripas. Como lhe disse, mamãe não podia... não tinha como fazer absolutamente nada em meu socorro. Resumindo: quando o pervertido do Nicanor entrou em nossa casa, a mamãe —, meu Pai do céu que a perdoe —, mamãe não está mais entre nós... morreu ano passado... a minha mãe, que Deus a tenha, se achava trancada à sete chaves, no quarto dela, com o João Roberto, o filho do Nicanor, que, naqueles idos, o rapazola cinco anos mais velho que eu, morava com a gente...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 11-6-2021

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Um comentário:

  1. Verdadeiramente uma história real. É o nosso cotidiano se repetindo indefinidamente por debaixo dos panos. As 'Lucélias e as Bernadetes' estão por ai, espalhadas de norte a sul. Vivemos, a bem da verdade, num Brasil que não muda, que não se faz maior, que não cresce, que não deslancha. Tenho pena deste país tão bonito e promissor, que insiste em continuar pequeno, mirrado, solapado, acorrentado ao esqueleto da eterna criança que se esqueceu de olhar para o futuro bem ali a sua frente.
    Carina Bratt
    Ca
    Em Vila Velha, no Espírito Santo.

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