Péricles Capanema
Advertência e apelo.
O artigo trará o que tanta gente — não tira delas a razão — considera motivo de enfado: repetição e divagação. No fim, espero, a leitura não terá sido maçante. Repetirei, é certo; vou divagar (aparentemente). Foi necessário. Vamos à minha defesa prévia.
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Rio de Janeiro nos anos 1930. As fotos abaixo são da mesma cidade, mais ou menos da mesma época |
Repetir é sempre ruim? Duvido.
Não está na base do aprendizado e da ciência? Repetição de bons atos não é o
fundamento da reputação? E ainda lembro Napoleão: “A repetição é a
figura mais forte da retórica”. E a retórica, meio de convencimento, veste
a lógica com a beleza da exposição. Divagar, vagar sem rumo, deambulação
espiritual sem destino. Contudo, muitas vezes a divagação é apenas aparente,
vem costurada por fio oculto; pretendo ser o caso presente. Ouso afirmá-lo, o
fio foi enorme aspiração de ver meu país natal realizar sua vocação de grandeza
cristã. Vejo-o cada vez mais distante dela. O eventual leitor julgará. Tanto
mais que, no frigir dos ovos, o artigo, com pequenas divagações, repete
advertência (ou aviso, pois quem avisa amigo é) e renova apelo pela
continuidade.
Redigia meu último artigo
“Remansos restauradores”. Precisei fazer um arquivo word e pus o mencionado
título como nome. Na tela surgiu a pergunta: queria apagar arquivo com o mesmo
nome? Santo Deus! Já existia um arquivo com tal nome? Nada registrava minha
memória. Fui verificar, era de 2017, rascunho para um artigo que em 30 de
outubro de 2017 foi colocado no blog com o título “Corredeiras e remanso” —
está na rede. Em números redondos, matéria de quatro anos atrás, pleno governo
de Michel Temer.
Privatização tóxica.
E o que dizia o texto? Em
princípio, privatização, quanto mais, melhor. O problema era outro; o artigo
analisava de início leilões do pré-sal, áreas destinadas à exploração. Quem
ganhou a rodada? Entre os grandes ganhadores, a Petrobrás (estatal brasileira),
uma estatal norueguesa e estatais chinesas. As áreas saíam da mão do Estado e,
no processo de privatização brasileiro, iam para a mão do Estado. Comentei
então:
“Programa de privatização deveria significar entregar à iniciativa privada, a particulares, atividades econômicas antes levadas adiante pelo Estado. Mas aqui vou deixar de lado esse aspecto. Só sublinho agora um ponto: a China comunista, potência imperialista, continua a comprar planejada e avidamente fatias da economia brasileira, sob a indiferença cega ou a cumplicidade criminosa de decisivos setores da vida pública nacional. A geração atual está pondo em risco, insciente ou criminosamente, a independência e a soberania do Brasil de amanhã”.
Se mudou alguma coisa de lá
para cá, foi muito pouco. É preciso continuar bradando as mesmas coisas.
Tratei ainda das observações
sobre o Brasil de dois grandes intelectuais europeus, o primeiro escritor e
dramaturgo consagrado, Stefan Zweig (1881-1942), o segundo, Fernand Braudel
(1902-1985), dos maiores historiadores do século XX. Transcrevo abaixo o que
escrevi quatro anos atrás. Só acrescento aqui uma parte da carta de despedida
deixada por Stefan Zweig, pouco antes de se suicidar em Petrópolis:
A seguir, o texto de 2017, com
modificações mínimas. A presente situação caótica da vida pública brasileira o
tornou ainda mais atual. Tem um convite implícito, vivifiquemos raízes, elas,
mesmo escondidas, têm seiva preciosa, penhor de futuro no rumo certo.
Passo agora à riqueza
espiritual de que queria tratar buscando testemunhos em passado ainda recente.
Mesmo nos rios mais revoltos — e o Brasil infelizmente rola correnteza abaixo
—, aqui e ali aparecem remansos. A gente neles se detém, retempera forças, e logo
depois volta a navegar.
Recusa da violência,
brutalidade, sadismo.
Benquerença.
“O Brasil, por sua
estrutura etnológica, se tivesse aceitado o delírio europeu de nacionalidades e
raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranquilo do mundo”. Discorre
a seguir sobre a imensa diversidade de raças e continua: “Da maneira
mais simples o Brasil tornou absurdo o problema racial que perturba o mundo
europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema”. De
outro modo, constatou benquerença tão enraizada, convívio benevolente que, a bem
dizer, trazia em si, no bojo, a resolução do problema do racismo no Brasil. De
outra maneira, está implícito no texto do intelectual vienense, a influência de
ares assim tornaria mais fácil, rápida, proveitosa, eficiente e definitiva a
resolução de problemas centrais para o destino nacional. Não deveria ter
acontecido, mas aconteceu; ela se evolou.
Stefan Zweig passa a
conjeturar sobre a origem de tal situação: “Certa brandura e uma suave
melancolia”. Nos estudantes, “inteligência unida a modéstia e polidez
tranquilas”. No geral, “essa forma mais suave e mais serena da vida
é um benefício e uma felicidade”.
Tal maneira de ser se refletia
na política: “O Brasil não tem desejos de conquistar territórios, não
possui tendências imperialistas. O princípio básico de sua ideia nacional [é] o
desejo de conciliação e acordo, produto natural dum predicado do povo”.
Despreocupado com a segurança,
Stefan Zweig pacificamente visitou favelas, então mais pobres que as atuais: “Tinha
um mau pressentimento. Esperava receber um olhar raivoso ou uma palavra
injuriosa. Mas para esses indivíduos de boa-fé um estrangeiro que se dá ao
trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede bem-vindo e quase um amigo”. Visitasse-as
hoje sem a permissão do chefe da boca de fumo, para começo de conversa seria
depenado. Facilmente sequestrado ou morto.
Não estou sobrevalorizando as
impressões de Stefan Zweig. Tem seu ponto-de-vista de europeu educado na Belle
Époque numa das capitais mais civilizadas da Europa. No seu olhar pode
facilmente existir influência do romantismo do século XIX. Nada disso excluo e
ergo em posição de destaque. Mas também não quero subestimar suas opiniões.
Dados os descontos, ele parece contemplar outro país, tragado pelo tempo, hoje
sacudido por incompreensões, rasgado por divisões, com patrulhas com pouco ou
nenhum escrúpulo moral cultivando o ódio. Pouco existiria daquele velho
Pindorama (ou Terra de Santa Cruz) formado com dificuldade, missionado em
especial por jesuítas, carmelitas e franciscanos. Dele — recordo lenda bretã —,
como uma catedral engolida por maremoto, só se ouviria o plangor longínquo dos
sinos debaixo das águas revoltas.
“Foi no Brasil que me
tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal
espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi
a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no Brasil”.
O que significava para ele ter ficado inteligente? Foi pergunta que lhe
fizeram. Deu várias respostas ao longo dos anos. Duas delas: “Fiquei
menos banal”. A outra: “Lá eu aprendi a ser feliz”. O
espetáculo de gentileza social lhe estimulou a inteligência. Tornou-a mais
abarcadora. Nas fontes da gentileza social, o interesse desinteressado
[paradoxo aparente] e o apreço pelo “outro”. O “outro” não é o inferno, como na
frase de Jean-Paul Sartre [l’enfer, c’est les autres], o “outro”, nessa
mentalidade, é estrada para o paraíso.
Regeneração de raízes.
Volto à pergunta de fundo, o
que restou do aroma evolado de árvore frondosa, que encantou Stefan Zweig e Fernand
Braudel? Raízes, pelo menos, deverão restar. É riqueza imensa, ainda que
potencial. Regá-las é fundamental. Sem seu cultivo, o Brasil nunca terá títulos
para ser nação com grandeza cristã, mesmo que consiga romper os obstáculos que
hoje o impedem de crescer, em bruto, quarenta anos patinando.
Título, Imagens e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
15-9-2021
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