sexta-feira, 8 de outubro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Como portal para outra dimensão

Aparecido Raimundo de Souza 

HOJE, AO ACORDAR, por volta das sete, fui ao banheiro, como sempre faço, todas as manhãs, em nada mais, nada menos, quase beirando setenta anos de existência. Depois de tirar a água do joelho, me preparei para fazer a barba. Parei diante do espelho. Meu Deus, o que é isto? O que foi que aconteceu comigo? Eu não me refletia no vidro. Achei estranho. Não é esquisito, não se enxergar, no espelho, depois de tantos e tantos anos? Cheguei mais perto, a fim de espiar melhor. O hálito da minha boca, embaçou parte do cristal. Mas foi só o que aconteceu. Desconfiado, passei as mãos no rosto, apertei as bochechas, cofiei a barba, alisei o bigode, depois o couro cabeludo. Em vão. O vidro continuava sem a minha presença. 

Peguei o pincel com o creme de barbear e espalhei bem espalhado. Voltei a me procurar. Nem sinal! Às minhas costas, se viam, enfocadas no pequeno quadrado do caixilho, a porta que eu havia trancado à chave, o vaso sanitário no lugar, a cesta de roupas sujas no cantinho perto do box, o chuveiro, a janela de ventilação, e as quinquilharias da minha mulher sobre uma mesinha de ferro em formato de coração. Tudo normal. Só meu rosto — meu rosto não, o corpo inteiro. Eu estava ali, diante de mim, e, ao mesmo tempo, não estava. Existia, fora do reflexo, sem existir, porém, alguma coisa impedia a minha imagem de se projetar normalmente. Apavorado, abri a torneira e removi o creme. O líquido bateu forte na pele áspera, e, por um instante, pensei: “ao menos estou vivo e respirando!”. 

Assustado e tremendo convulsivamente, voltei a levantar a fuça, pausadamente. Antes de mirar diretamente para a superfície lisa do espelho frio, tentei afastar o medo e acalmar os ânimos. Respirei, contei de um a dez. Acima de tudo, deveria prevalecer a serenidade e o bom senso. Para ajudar o nervosismo que me tirava às forças, puxei uma peça de algodão que minha mulher sempre mantinha no porta-toalhas. Tampei parte do semblante. Só os olhos ficaram de fora. Se realmente eu havia sumido, ia tirar a prova dos nove. Estaria sonhando? Quem sabe dormia, à sono solto, e, acreditava estar no banheiro? Realidade, sonho, sonho, realidade? Onde terminava um, onde começava o outro? Mas que outro? Decidi partir para o tudo ou nada. 

A toalha, cobrindo meu medo, me dava arrepios. Meu medo arrepiado me fazia sentir frio. O frio, aumentando, tomando forma dentro da realidade me deixava meio que abestalhado. Temia o resultado. Será que havia pirado? Qual o quê!  Coisa da idade. Aos sessenta e nove, as pessoas começam a ter visões bestiais. Aquilo só poderia ser uma espécie de esquizofrenia mal parida. Que alternativa? Sou um homem ou um verme? Abri, de vez os olhos. Encarei o espelho. Credo! Credo em cruz! Me benzi, compenetrado. Somente a toalha apareceu, suspensa no ar, como se  um fantasma a segurasse. Gritei. Não, não podia ser. Nada daquilo acontecia. Devia estar em alfa. Ou em beta. Não se desaparece assim, sem mais nem menos. 

Existe, segundo andei lendo, um processo para se sumir. É preciso entrar numa fila maior que a do INSS, pegar uma senha, pagar uma taxa no banco, enfrentar filas, enormes, passar por pessoas chatas, encarar funcionários burocráticos. Depois vem aquela fase de preencher papeis, assinar, formulários, reconhecer firmas, arranjar testemunhas. Somente  ultrapassadas todas as ditas encrencas acima enumeradas, a moça com fisionomia de alma querendo reza bate o carimbo final escrito com letras  vermelhas: “APROVADO”. Enfim devidamente  carimbado, o sujeito estará apto a ser apagado do sistema. Comigo não aconteceu nada, logo, não poderia ter simplesmente sumido como se fosse um qualquer. Abri a porta e corri para meu quarto. 
Chacoalhei minha esposa. Ela se virou, assustada, invocada, pê da vida:
— Antão, Antão, cadê você? Antão, tem alguém aqui no nosso quarto...

Os berros escandalosos acordaram o resto da casa. Chegaram, na porta, meus dois filhos:
— Que foi, mãe?
— Cadê seu pai?
Pulei na frente dos meninos.
— Júnior, estou aqui. Fred, olha o papai...
Os dois moleques, contudo, continuaram a conversar com a mãe como se eu não existisse. Eles não me viam. Não me viam, ou se faziam de cômicos? Acho que todos queriam me dar diploma de otário. Só para me ver pagando o maior mico. Deixa estar!

Entrou, em cena, a Chiquinha, nossa empregada:
— Dona Bia, que barulheira é esta acontecendo aqui?
— Alguém me cutucou, Chica. Despertei assustada. Não vi o Antão...
— A senhora esteve no banheiro?
— Não, claro que não...

Em fila indiana, todos foram para o banheiro averiguar.
— Nada.
— Na cozinha?
— Com certeza seu Antão não passou por lá. Teria que ter se esbarrado comigo...
— Às portas?
Conferiram.
— Todas trancadas.

— As janelas dos quartos dos meninos.
— Igualmente como as deixei ontem, fechadas.
— Dona Bia, pensa comigo. Quem usaria as janelas? Estamos no vigésimo segundo andar. Que maluco sairia por uma delas?
— Junior, olhe embaixo da cama de vocês.
O menino obedeceu prontamente.
— E aí?
— Tanto na minha como na de meu irmão, só poeira, mãe. Bota tempo que precisa de uma boa limpeza...
Chiquinha, se fazendo de sonsa, desconversou:
— Pelo amor de Deus, patroa. Faça alguma coisa.
— Fred, interfone para a portaria. Vai ver seu pai resolveu ir até à padaria.
Fred ligou para o porteiro. Ninguém tinha me visto sair.

Veio uma idéia à mente do sabichão aqui. Botei em prática. Comecei a transitar no aposento, para lá e para cá. Em seguida liguei a televisão. Acendi e apaguei as luzes. Abri e fechei as portas do guarda-roupas. Um verdadeiro caos se formou. Meus dois filhos, minha mulher e Chiquinha, entraram em pânico. Os quatro soltaram a voz com vontade. Neste ponto nevrálgico do bafafá, a galera se empoleirou na cama. Abraçados uns aos outros, nem piscavam. Parecia filme de terror.
— Olhem! Espiem, os chinelos de seu pai! Estão andando de um lado para outro...
— E os pés de papai não estão nele — observou Junior.
— Engraçadinho. Nem os pés, nem seu pai! Vejam, agora. Foi em direção ao aparelho de som. Chiii!!! Abriu as cortinas. Passou pra varanda. Socooooooooooooooooorro!

Alguém, no corredor, deve ter ouvido os gritos. Afoitos chamaram o porteiro pelo interfone. O porteiro acionou o síndico, o síndico convocou alguns moradores. A dona Alzira, nossa vizinha de frente, ligou para a polícia. Em menos de cinco minutos, a rua aqui de casa, bem como o prédio, em todo seu entorno, se viu cercado de viaturas da polícia, carros do corpo de bombeiro, ambulâncias, e gente, muita gente se acotovelando, querendo bisbilhotar. Da sacada, aterrorizado e fora de mim, subi no parapeito. Olhei para baixo. A multidão olhava para cima esperando alguma coisa. Só não pulei porque tenho medo de altura. Ademais, não era louco o suficiente para me projetar no espaço à uma assomada daquelas proporções.

Estonteantemente catastrófica. Ademais, como chegaria lá embaixo? E como ficaria depois que meu corpo se espatifasse contra o chão de cimento? Jesus, Maria, José. Nem pensar! Final da história: o som da campainha se fez ouvir umas trocentas vezes. Vivalma teve a coragem de ir atender. Arrombaram a porta da sala. Deram com meu pequeno exército acuado, aos prantos e aos berros. Finalmente, depois de uma nova procura, canto por canto, correram para o alpendre. Mais espalhafatos e barafundas em uníssono. Acharam meus chinelos grudados no peitoril da varanda.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Vila Velha, no Espírito Santo. 8-10-2021

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Um comentário:

  1. A pura verdade a muitos desta forma como eu ou você somos invisíveis ninguém nos vê a não ser quando precisam de algo pois os seus relatos são enteressamte pois me cinto como tal personagem não passo de um mero fantasma para muitos pois quando acham nossos chinelo acham que estamos em casa mas na realidade qual casa se sou apenas fruto de uma imaginação pois a minha casa seria a mente de meus familiares pois qual familiares pois não tenho porque sou invisível não podem me tocar ou menos me esculacha porque deixei as sandálias viradas incrível como acabamos sendo desta forma temos que todos os dias se tornar visível para a sociedade ipocrita com suas leis sem noção ou seus julgamentos sem qualificação se reinventando todos os dias e momento mas somos percebidos só um pequeno espaço de tempo aí voltamos a ser invisível ..ASS.ERIVALDO.ALVES

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