Não há mais uma Constituição em vigor; ela é desrespeitada, caso após caso, pelo STF
J. R. Guzzo
O Brasil está sem governo. As coisas essenciais para o cidadão, como o fornecimento de luz elétrica, o Corpo de Bombeiros e a coleta do lixo continuam funcionando, graças a Deus, nos lugares em que existem — as pessoas encarregadas de executar esses serviços vão trabalhar todos os dias, sabem o que têm de fazer e fazem direito. Não parou a extração de petróleo. O metrô abre às 4 da manhã e vai até a meia-noite. O sujeito que chega à porta de um pronto-socorro tem chances reais de ser atendido. A maioria dos sinais de trânsito está alternando o verde, o vermelho e o amarelo. O país já passou a marca dos 100 milhões de totalmente vacinados contra a covid, ou de 150 milhões com pelo menos uma dose — um bom exemplo mundial. Em suma: o que interessa, mesmo, está razoavelmente de pé, e isso não é assim tão pouca coisa. (Na Venezuela, por exemplo, a produção de 3 milhões de barris diários de petróleo caiu para 1 milhão. Pontes vão desabando aos poucos e as autoridades deixam cair, porque ninguém sabe como consertar. A inflação nos últimos 12 meses foi de 2.600%. O dia a dia é uma calamidade — e lá, claramente, existe governo demais. Ou seja: ter governo, mas governo ruim, não adianta nada.)
Foto: Nelson Jr./SCO/STF |
O
governo não consegue, sequer, baixar uma portaria lembrando que o cidadão tem o
direito legal de não ser demitido do emprego caso se recuse a tomar vacina
O problema é que no Brasil de hoje não existe governo nenhum no alto da árvore. Quem tem a obrigação legal, política e moral de governar não está governando — ou, muito pior ainda, um dos Três Poderes está impedindo ativamente os outros dois de governarem, com a ilusão de que governa tudo; no fim das contas, acaba sem governar nada, pois o que governa é apenas a desordem. Não há mais uma Constituição em vigor; ela é desrespeitada, caso após caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Não há segurança jurídica, pois cidadãos e empresas não sabem, simplesmente, se a lei de hoje é a mesma de ontem, e se vai estar valendo amanhã. Ninguém sabe, também, se quando o Congresso aprova algum projeto é à ganha ou é à brinca. Juízes, procuradores e outros barões da Justiça, que dão a si próprios salários de R$ 80.000 por mês, ou mais, paralisam quando bem entendem a administração pública. Decisões econômicas cruciais não podem ser tomadas. A lei diz que não pode haver presos políticos no Brasil; há presos políticos no Brasil. A lei garante a liberdade de expressão; as pessoas são punidas por expressarem suas opiniões. Investigam-se, julgam-se e punem-se crimes que não existem no Código Penal Brasileiro, como o de “desinformação”, ou o de fake news. Não há mais independência de Poderes; o Congresso e o Executivo nunca sabem, nunca mesmo, se as suas decisões vão valer ou não. Se isso não é desordem, então o que é?
O Executivo, com certeza, não
manda nada. Mandar como, se as suas decisões mais simples são abertamente
desrespeitadas? O governo não consegue, sequer, baixar uma portaria lembrando
que o cidadão tem o direito legal de não ser demitido do emprego caso se recuse
a tomar vacina. É uma coisa elementar. Mas o Ministério Público “do Trabalho”,
que existe para proteger os empregos, diz que a decisão não vale; o prefeito de
São Paulo diz que não vai aplicar a instrução e fica tudo por isso mesmo. O
presidente Jair Bolsonaro quis nomear, como é seu direito legal, um diretor
para a Polícia Federal; o STF proibiu, mandou nomear outro e foi obedecido. A
cada 5 minutos, o mesmo presidente recebe de algum dos dez ministros do Supremo
um prazo de “cinco dias”, ou coisa que o valha, para “explicar” por que fez
isso ou aquilo. Uma entidade pública legalmente vinculada ao governo federal, a
Fundação Palmares, está proibida de demitir qualquer funcionário, por qualquer
motivo que seja — um caso provavelmente único no mundo. O presidente da
República, de novo ele, é censurado abertamente pelas “redes sociais” —
qualquer YouTube ou Twitter da vida se dá o direito de proibir o homem de
falar, ou de selecionar o que ele fala.
O governo não consegue levar
uma linha de transmissão de energia elétrica para um Estado inteiro, o de
Roraima, porque meia dúzia de índios e o Ministério Público não deixam. Não
consegue, da mesma forma, construir uma ferrovia estratégica para o interesse
público porque seu traçado passa em menos de 0,1% de uma “floresta nacional” —
nem executar o seu projeto de “escola sem partido”, para limpar um pouco os
currículos escolares da sua carga política e ideológica de esquerda. A
administração federal está infestada por milhares de nomeações políticas feitas
nos governos de Lula e Dilma Rousseff; os beneficiados não se subordinam aos
seus superiores hierárquicos, mas à orientação do PT e de seus partidos
auxiliares. O governo foi proibido de bloquear verbas de Goiás retidas por
falta de pagamento das dívidas estaduais; a mesma coisa aconteceu com a Bahia.
Durante a covid, especialmente, o Supremo deitou e rolou em cima da Presidência
— a começar pela mais extraordinária decisão de todas, a que criou 6.000
repúblicas dentro do país, ao dar às “autoridades locais” independência quase
absoluta para cuidar da epidemia. (Por conta disso, até hoje, dois anos letivos
depois, há prefeitos que mantêm fechadas as escolas municipais.)
Ao
todo, segundo uma lista que circulou no Palácio do Planalto, os ministros
tomaram, de 2019 para cá, 123 decisões diretamente contra o governo
Não há nada que o STF tenha
deixado de fazer para combater o governo. Bolsonaro foi intimado a “explicar”,
em tantos dias, o decreto que facilitava o porte de armas, o corte de 30% nas
verbas das universidades federais e o “Programa Verde Amarelo”. Exigiram, da
mesma forma, que ele “explicasse” declarações que fez a respeito do pai do
advogado Felipe Santa Cruz, presidente da OAB e destaque no atual palanque da
oposição, sobre a ex-presidente Dilma Rousseff e sobre o jornalista americano
Glenn Greenwald. Bolsonaro foi proibido de extinguir os “conselhos federais”,
dinossauros burocráticos que prosperam sem controle de ninguém em Brasília. A
medida que transferiu a demarcação de terras indígenas da Funai para o
Ministério da Agricultura, um passo mínimo para enfrentar as fraudes na área,
foi suspensa. Também foi cancelada a decisão de dispensar as empresas da
obrigação de publicarem seus balanços em veículos de “grande circulação”. Foi
anulada, igualmente, a extinção do “seguro obrigatório” para carros, o infame
DPVAT. Enfim, são três anos inteiros da filosofia do “se é coisa do governo,
então eu sou contra” — especialmente quando a “coisa do governo” é mexer em
interesses materiais dos amigos do STF. Ao todo, segundo uma lista que circulou
no Palácio do Planalto, os ministros tomaram, de 2019 para cá, 123 decisões
diretamente contra o governo. Dá quase uma por semana. Faz algum sentido um
negócio desses?
Com o Congresso, o desastre é o mesmo. Até outro dia, numa aberração que jamais será explicada, a Câmara dos Deputados do Brasil era a única Casa parlamentar do planeta a aceitar que um dos seus membros, em pleno exercício do mandato, estivesse na prisão — ficou preso nove meses, aliás, por decisão pessoal de um ministro do STF. Foi um momento realmente extraordinário. O deputado não foi cassado em nenhum momento pelo plenário da Câmara. Recebeu todos os seus salários e vantagens. Seu suplente não assumiu. Com o mandato válido, poderia perfeitamente ter votado — mas não podia comparecer às sessões porque estava na cadeia, e não foi permitido, também, que ele votasse em esquema de xadrez-office, ou de teletornozeleira. Durante toda a sua prisão, como mostra a reportagem de capa desta edição, os 513 deputados federais da República aceitaram como coelhos assustados o ministro Alexandre de Moraes mandando chover e fazer sol; se tivesse decidido que o deputado Daniel Silveira ficaria preso pelo resto da vida, ninguém iria fazer nada. Que autoridade pode ter um Congresso desses?
O presidente do Senado foi
obrigado pelo ministro Luís Roberto Barroso, como quem dá ordens a um
subordinado, a aceitar a realização da sinistra “CPI da Covid” Esse mesmo
Senado morre de medo da ideia de examinar a conduta dos ministros do STF, como
é seu direito e sua obrigação legais — os senadores passam mal só de ouvir
falar no assunto. A lei criando o voto “impresso”, ou com comprovante de
votação, foi aprovada de forma aberta e legítima pela Câmara; foi anulada,
simplesmente, pelo mesmo ministro, e votada uma segunda vez — aí, com uma
decisão aprovada pelo STF. Ainda agora, a lei do pagamento das emendas
parlamentares, que representa exatamente a vontade da maioria dos deputados e
foi aprovada da maneira mais lícita que se possa imaginar, foi vetada pelo STF.
A ministra Rosa Weber, com o apoio dos colegas, decidiu legislar diretamente em
lugar dos deputados: baixou uma série de ordens a que a Câmara deve obedecer em
relação à matéria aprovada. Não há nenhuma razão lógica, administrativa nem
constitucional para isso — a nova lei, morta ao nascer, é pura e simplesmente a
decisão legítima de uma Câmara dos Deputados legalmente eleita. Sua anulação é
apenas mais uma demonstração de que o Supremo continua dando a si próprio, como
faz o tempo todo, o direito de dizer se as leis aprovadas pelo Congresso
Nacional valem ou não valem — e como, exatamente, elas devem ser.
Não interessa se a lei das
emendas “do relator” é boa ou é ruim — se ela foi aprovada legalmente pelo
Poder Legislativo, o STF não tem nada a ver com isso. Tem apenas de aceitar,
como o Executivo e o resto da nação. Mas os ministros, cada vez mais, acham que
cabe a eles decidir o que é bom e o que não bom para o Brasil. Seu trabalho não
é mais aplicar a Constituição, mas decidir como o país tem de se comportar, da
publicação de anúncios de sociedades anônimas à venda de seguros de carro, em
nome do superior bem de “todos” — isso quando não estão ocupados em decidir o
que é a verdade e enfiar gente na cadeia por fake news e atos contra o seu
estilo de democracia.
Os
ministros têm uma capacidade praticamente ilimitada para fazer o mal, mas quase
nenhum repertório para fazer o bem
A atuação do STF não é neutra.
É perfeitamente inútil esconder os fatos: dos dez atuais ministros do SFT, sete
foram nomeados por Lula e Dilma. Como é possível pretender que, uma vez no
Supremo, eles deixaram de ser quem eram e passaram a se conduzir como juristas
imparciais? O mundo político, a mídia e a elite podem fazer de conta que uma
coisa não tem nada a ver com a outra, mas é óbvio que tem tudo a ver; na
verdade, só tem a ver. As decisões do STF, assim, são as decisões de um partido
político de oposição e geralmente de esquerda — aliás, virou um hábito de o PT
e seus satélites recorrerem ao Supremo, e ganharem, a cada derrota que sofrem
em votação no plenário. E a confirmação da independência do Banco Central,
aprovada em lei no Congresso? E a recusa do Tribunal Superior Eleitoral, um derivativo
do STF, em anular a chapa Bolsonaro-Mourão? São, de fato, decisões que saem da
“curva” do tribunal, mas e daí? O conjunto da sua conduta compõe uma condenação
maciça aos dois outros Poderes, o Executivo e o Legislativo, ambos eleitos
livremente pela população brasileira — o que não tem nada a ver com as funções
e os deveres constitucionais da mais alta Corte de Justiça do país.
O grande problema para o
Brasil, nessa salada, é que o STF não deixa o governo nem o Congresso
governarem, mas também não consegue, ele próprio, governar o que quer que seja
— cria a baderna jurídica, política e administrativa na sociedade, e fica
flutuando acima dela, impotente para gerir problemas da vida real e sem
responsabilidade pelas ruínas que cria. Os ministros têm uma capacidade
praticamente ilimitada para fazer o mal, mas quase nenhum repertório para fazer
o bem; o resultado é isso que se vê aí. Cada vez mais, os ministros se
comportam — quase sem exceções — como o chefe que grita nas reuniões e acha que
está impondo respeito, quando está apenas demonstrando falta de controle sobre
si mesmo. É evidente, olhando com um pouco mais de atenção o que dizem nas suas
decisões, que “caiu” o sistema em que se processa a atividade mental de suas
excelências. Em algum lugar do circuito, um fio acabou desencapado — e o
resultado é o espetáculo de ministros lançando bulas de excomunhão para
castigar os culpados pela “polarização entre Poderes”, a “animosidade” na
população, “ataques contra agentes políticos” e uma penca de disparates do
mesmo tamanho. Como assim? Nada disso, obviamente, é proibido por lei. Desde
quando dar notícias apresentadas “de forma parcial” é um crime, um desvio moral
ou uma ameaça “à democracia”? Não tem mais muita coisa a ver com sanidade; tem
tudo a ver com jurista de ditadura bananeira lendo sentença de condenação
contra preso político.
Governar não é isso.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista OESTE, nº 86, 12-11-2021
Eles não vão parar!
ResponderExcluirMoraes suspende julgamento de ação de Aras que quer reduzir poder da defensoria
Empregadores podem exigir ‘passaporte da vacina’, decide Barroso
Na foto acima, podemos ver um bando de urubus discutindo onde irão pousar para novas sacanagens. O povinho sofrido que se cuide.
ResponderExcluirCarina
Ca
São Paulo, capital