Aparecido Raimundo de Souza
Seus gestos de moça suave, no
decorrer das horas que se seguiram aquela cena brutal... se degringolaram. Os
seus olhos meigos e serenos se fecharam brutais e selvagens. O pé no acelerador
do carro que pegara de seu namorado, parecia movido por vida própria. Voava
pisando fundo, pela estrada de destino incerto. Abruptamente, tudo ao seu
entorno se transformou numa catástrofe como se o mundo tivesse vindo à baixo.
— Meu Deus, o que está acontecendo
comigo? — gritou, assustada, as palavras saindo de sua boca impulsivamente. O
que está acontecendo comigo?
Ela sabia, por experiência própria,
que a realidade do que fizera não poderia ser mudada. Tinha consciência plena e
entendia que, no minuto seguinte o impossível se materializaria medonho à seu
lado e poderia confundir sonho e realidade, realidade e sonho e, nesse
interregno dúbio e deturpado, o que parecia inalcançável, se transformaria de forma
robusta e concreta, firme e forte como uma rocha. Beatriz seguia em pranto
sentido. Ao se olhar no retrovisor, o espelho mostrou uma tez entristecida, os
olhos desbrilharam num súbito impulso de fúria para um ofegante pétreo e
friamente inexpressivo.
Na boca desmesuradamente aberta,
sobressaíam dentes brancos como pequenos chumaços de algodão, embora,
internamente, um ranger felino moldasse um quadro não condizente com a sua
silhueta de mulher perfeita e estonteantemente formosa. Se sentia fraca, confusa,
indecisa... tinha a impressão que, dentro em breve, afundaria num lamaçal de
águas escuras. Uma sensação de violento deslocamento do seu lado sério, se
tornou impreciso e fraco. Cobriu o rosto com as mãos, soltando, o volante por
um milésimo de segundo. Todavia, o receio mórbido de minutos atrás, a fez
voltar a segurar com força bruta os comandos de carro, ao tempo em que,
repetindo a mesma frase que em menos de cinco minutos lhe amedrontava, se
revelou a ela como se o destino lhe houvesse dado um recado sutil, porém,
difícil de ser digerido.
— Meu Deus, o que está acontecendo
comigo?
Beatriz não se conformava ou não queria se adequar com aquela situação. Sempre detestou o aparecimento de obstáculos que pudessem frustrar seus planos. E, agora, assim, do nada, um estorvo se punha em seu horizonte, impedindo o deslocamento dos seus objetivos rumo ao ponto programado. E qual era, exatamente esse ponto em questão? Edgar Fernando de Albuena, o príncipe da sua vida. Aquele homem-menino, dois anos mais velho que ela. Apesar de inexperiente para as coisas satisfatórias do bem maior, o amor, o mancebo fazia seu coração bater descompassado, como se, no minuto seguinte, fosse sair pela boca, num impulso tresloucado e fora de controle.
Vezes sem conta tentou afastar o
rapaz, apagar a sua figura estonteante. Esquecer os seus beijos arrebatadores e
seus abraços afogueados de um calor férvido e ebulitivo. O pior: olvidar da
cama, quando ela se entregava numa paixão enlouquecida e ele a fazia viajar,
ensandecida por espaços e amplidões ainda não descobertos, como se a compridez
do infinito não existisse e o universo fosse inteirinho a morada das suas
paixões mais desconexas, fazendo com que ambos esquecessem de retornar à
realidade de suas vidinhas pacatas e comuns. Em face disso, vezes não
computadas, Beatriz tentou dar um basta. Afastar o rapaz do seu dia a dia,
desvinculando a sua figura do seio do seu mundinho familiar.
Mesmo norte, ousou desengolir o
coração em festa que persistia subir pela garganta. Todavia, o desenfreio da
paixão, o desejo fulminante da posse, a emoção conturbada falavam mais alto.
Impedia qualquer movimentação contrária aos desejos que lhe pipocavam a alma
atormentada. Por sua vez, o músculo úmido de maldade, senhor de si, embora
sofresse junto com a sua dona, não batia. Ao oposto, em rota dramática, girava
dentro dela numa dimensão vertiginosamente inconsequente. Com isso, em tom
altivo, não sossegava. Descontrolado, irritava intensamente seus brios. Fazia seu corpo dar cambalhotas, o que
tresdobrava o impulso açodado e doidivano pelo seu príncipe Edgar Fernando de
Albuena.
Só de pensar nele, se perdia em meio
a um mar de águas revoltas. Saia do chão, viajava a mil por hora, na sua
sandice desregrada e infrene. Num instante, se sentia como uma passista
rodopiando no meio de uma escola de samba em plena Marquês de Sapucaí. Em outras,
se via na pele de uma viciada em drogas com uma cracolândia inteira à sua
disposição. Às vezes, o seu amor se fazia tão forte e carente, poderoso e
violento que Beatriz perdia o senso prático da vida normal e se via como uma
gata desvairada rodeada de ratos abobalhados tentando abocanhar um queijo
gigante. Loucuras e mais loucuras vinham à tona e criavam, numa profusão
interminável de luzes se acendendo e apagando, repletadas de imagens
pecaminosas.
Por assim, no quilômetro seguinte,
se via estirada no leito redondo, completamente nua, às partes dos seus
secretos expostos à visitação de seu macho. Fora de controle, endoidecida,
distribuía beijos e afagos em seu garanhão. Literalmente radiante e
desbaratinada, se enclausurava em uma garota em dias de passar à vida de
casada. Tinha a impressão de se ver flagrada com um amante numa suite de motel
de beira de estrada. Edgar Fernando de Albuena, mulherengo, folgazão, a cabeça
amalucada, cultuava um bigode exótico, tipo o de Tonico Rocha, personagem de Alexandre
Nero no folhetim de Thereza Falcão.
Carregava consigo um defeito. O pior
deles. Fumava sem limites. Tabagista compulsivo, não respeitava as mulheres com
quem dividia os seus cardápios sexuais mais variados. Acendia o seu veneno na
casa onde cismava de passar algumas horas e, sem um mínimo de respeito pela
companheira que lhe fazia a bola da vez. Com isso, empesteava a casa toda.
Amava incondicionalmente a babação de ovo da Beatriz. Contudo, não queria nada
sério com ela, como, igualmente, não pensava em nenhum compromisso com as
outras. Ao estar nos braços de Beatriz, em sua concepção de pilantra e
vagabundo, ela se assemelhava a uma rosa vermelha solitária depositada numa
campa de cemitério de periferia, ao passo que para ele, a coitada não ia além
de uma biscate qualquer, tipo uma rameira de zona, grosso modo, uma célula
anormal crescendo entre um pólipo nasal. Suas risadas sarcásticas, aos carinhos
dela, se estardalhaçavam como a estridulação de espectros em busca de lugares
secretos para se esconderem dos vivos.
Até que no dia de hoje, quase dois
anos e meio de namoro (sério para ela, de passatempo e de fuleiragem para ele),
Beatriz deu o flagra. Pegou o seu homem de calças curtas. Ou melhor, sem
calças. A boca escancarada metida onde não devia. Edgar se mimoseava
eletrizante envolvido em gritos histéricos enriquecido ao abafo de palavras
ininteligíveis, com a Priscila Beltrão, a desgraçada e sua melhor amiga.
Trabalhavam juntas, mesmo prédio, andares diferentes. Iam para casa dividindo
igual condução. Compartilhavam marmitas e lanches. Enfim, não há mal que sempre
ature, nem bem que nunca se acabe. Priscila saiu mais cedo (labutava até às
seis. Pediu ao chefe e se foi às três e meia. Por sorte ou azar (vai se saber
dessas armações do destino), sem querer, sem programar coisa alguma, deu uma
incerta na hora certa e, de fato, pilhou o seu diletante nos braços dela, justo
ela, a sua melhor amiga e confidente.
Sem desconfiar de nada, adentrou em
seu apê onde morava com Edgar. Logo que se viu na minúscula sala, ouviu vozes
vindas do único quarto. Apurou os ouvidos. Não demorou a distinguir os sons.
Eles traduziam um vocábulo voltado para orgias sexuais correndo a todo vapor.
Se aproximou mais, desta vez, como uma serpente prestes a dar o bote. Quem
seria a fulana? Curiosidade à sanha do desespero, não imprimiu mais que dois
passos. De fato, o Edgar. Mas com quem? Deu um tempo, e então, a descoberta
cruel.
— Priscila, meu amor, eu te amo.
Vamos acabar logo com a nossa farrinha e comer algo. Estou com uma fome dos
diabos.
Lá estava a infame. A Priscila. Dos
cabelos aos pés, os impudicos à mostra. Sua melhor amiga. Em face daquele
cenário de conflito comendo à solta e a toda velocidade no auge da cama
barulhenta, logo na cama que era dela, pior, na casa dela, no espaço que ela
achava ser somente deles dois, a cena impactante a levou aos extremos.
Diante daquele ato pérfido, a
distorção dos sentidos se fez endemoniada. A pressa ansiosa de excitamento
reprimido invadiu seu espírito inconformado. Pelo desconforto do que
presenciava, pela quebra da fidelidade, um furor até então nunca sentido se
sobrepôs ao ódio e esse sentimento maligno aflorou de forma maciça, a ponto de
vazar de suas entranhas. Os olhos ficaram cegos. Na verdade, se enfraqueceram da
visão, se aturdiram, desfocados e distantes. Beatriz não pensou duas vezes.
Resolveu. Agora ou nunca. Não sem alguma dificuldade, se movimentou como
entrou. A pas de loup. Na cozinha, colocou uma chaleira com água e ligou,
apressada, os bicos de duas das seis bocas do fogão, sem acendê-los.
Antes, cuidou de fechar tudo. Em
sequência, deu meia volta e retornou à
porta da sala. A raiva e a repulsão, recheadas de mil metros de ansiedade por
segundos, atrelada a exaltação violenta estavam muito longe da sua calmaria.
Seu estado, em questão de segundos, passou da tranquilidade arroubada para um
estágio muito acima do encolerizado. Falando de si para consigo, num sussurro
feroz, lembrou: “meu Deus, o que está acontecendo comigo?”. Abruptamente,
faltou terra aos pés. Tudo se transformou, como num passe de mágica. Uma
desilusão se fez maior, se agigantou.
A vontade de matar, como um desejo
inesperado, com fins destruidores, se formou em seu desespero espicaçado.
Beatriz não esperou uma chance mais alvissareira. Trancou tudo e se foi, sem
olhar de retro. Edgar Fernando de Albuena, logo viveria, com a sua amásia, os
seus melhores e derradeiros momentos de prazer. O final soube depois, nos
jornais da noite. Ao se levantar abraçado com a sirigaita e sentindo um estranho
e forte cheiro vindo de algum lugar dentro do apê, impensadamente nem se deu
conta. Seria o gás? Buscou o interruptor para se situar em meio a nublada
ablepsia do quarto mergulhado em escuridão em face das cortinas cerradas. Ao
levar o isqueiro à ponta do cigarro, que havia tirado do maço...
Título e texto: Aparecido Raimundo
de Souza, de Porto Alegre Rio Grande do Sul. 3-12-2021
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