Uma burla com a dimensão da TAP não cabe numa democracia: ou há democracia ou há burla
Alberto Gonçalves
Na terça-feira, em Murça, dois
homens abeiraram-se do prof. Marcelo e, em vez de pedirem “selfies”,
retribuíram-lhe um milésimo do desprezo que Sua Excelência nos dedica. Para
uns, entre os quais me incluo, a cena serviu de consolo, ainda que singular e
escasso, pelos vastos enxovalhos presidenciais. Para outros, aquilo foi uma
brutal insolência, que não devia ter acontecido e, li algures, no limite não
devia ter sido transmitida. Esta escola de pensamento defende, sem assumir que
defende, que os poderosos – logo que não sejam de “direita” – merecem a total
reverência da ralé. Em tempos, houve uma polícia especialmente empenhada em
zelar por isso. Tais cautelas garantem a polidez das massas e, ao filtrar as
críticas, permitem aos senhores que mandam continuar a mandar com a desejável
impunidade. E incompetência. E arrogância. Em suma, é preciso que os
responsáveis pela ruína do país não sejam responsabilizados. Em nome da paz
social, é preciso que sejam louvados.
Vem isto a propósito do bonito
coro de encómios que, um par de dias decorridos, acompanhou a demissão do
ministro Pedro Nuno Santos. Assim sim, é que os grandes estadistas devem ser
tratados: o “Pedro Nuno” tem dinamismo, o “Pedro Nuno” tem visão, o “Pedro
Nuno” tem iniciativa, o “Pedro Nuno” tem coragem, o “Pedro Nuno” tem o futuro à
sua frente. O que fez o “Pedro Nuno” para suscitar tamanha enxurrada de
salamaleques? Fora uns desvarios com sucata ferroviária, usou 3.200 milhões do
nosso bolso para brincar com a TAP e, quando se aborreceu, devolvê-la ao ponto
de partida. Não parece uma proeza formidável. Na verdade, parece configurar uma
coisa digna de julgamento, em praça pública ou cave privada. Mas, conforme
recomenda o protocolo, o “Pedro Nuno”, que do alto das suas aptidões espera
reentrar primeiro-ministro, saiu sob aplausos.
E o patrão do “Pedro Nuno”, que patrocinou com dinheiro alheio a brincadeira da TAP, ficou. Em nações com menor civismo, ou maior quantidade de cidadãos de Murça, o dr. Costa e o governo (desculpem) não ficariam. A TAP poderia ser apenas um pretexto no meio de inúmeros abusos de igual ou superior dimensão, como os 500 mil euros daquela dona Alexandra foram um pretexto no meio do criminoso processo da “companhia de bandeira”, idealmente a meia haste. O certo é que, em qualquer sociedade onde a maioria das pessoas tivesse a vergonha na cara que falta aos políticos, o dr. Costa estaria a esta hora num voo “low cost”, disfarçado e rumo a destino desconhecido. Ou agachado num esgoto, estilo Kadhafi.
Por sorte, os portugueses são
parcos em vergonha e ricos em obséquio, natureza que possibilita ao dr. Costa
anunciar com doce cinismo que continuará a afundar-nos gloriosamente até 2026,
quiçá, confessou ao dr. Balsemão (!), 2030. Francamente, não será necessário
tanto. Os avanços em matéria de nepotismo, compadrio, autoritarismo e
corrupção, e os recuos na economia, na saúde, no ensino e na justiça já se
encontram razoavelmente adiantados. Mais um ano disto e não sobrarão muitos
empregos e verbas para distribuir, nem muitas vidas para arrasar. Se o dr.
Costa permanecer por aí, movido pelo sentido de Estado que não possui e
amparado por um chefe de Estado que não saberia chefiar uma claque de dominó, o
único motivo imaginável é o vício do poder, por parte dele, e o vício da
submissão, por parte dos súbditos.
Reparem que não falo
exclusivamente dos fiéis do PS, ou do PS e das agremiações leninistas, que hoje
na AR chegam a três. Vi gente que nunca votaria em nenhum dos partidos acima
apresentar o episódio de Murça enquanto um exemplo de inadmissível má-criação.
E não, não se referiam à atitude do prof. Marcelo, tipicamente medrosa durante
o confronto e insultuosa depois. Com ou sem a ajuda dos “media”, quase todos
convertidos à difusão da propaganda oficial, há uma espantosa percentagem da
população que continua a defender – e, por pressão, a impor – a cortesia na
abordagem a criaturas que inequívoca e drasticamente lhes são prejudiciais.
Ninguém pode acusar os portugueses de morder a mão que lhes dá de comer: aqui
beija-se a mão que nos rouba a comida.
Além de não se esgotar em
personagens menores nem em análises às fascinantes guerrilhas no Rato, uma burla
com a dimensão da TAP não cabe numa democracia: ou há democracia ou há burla. À
semelhança do que aconteceu com o BES, a EDP e centenas de casos e casinhos, o
povo cala-se e calando-se opta por ser burlado. O povo não se pode queixar. Ou
melhor: o povo poderia e deveria queixar-se, queixar-se imenso e com
proporcional estrondo, queixar-se de modo a criar dez, cem, mil Murças,
queixar-se a ponto de fazer tremer as pernas em fuga dos espécimes que o
desgraçam.
Mas, por razões diversas ou
pura irracionalidade, o povo não se queixa. E os espécimes continuam à solta. E
não só à solta: alguns mantêm-se em cargos de decisão. E não só em cargos de
decisão: estão prontos para, com pausa para férias e tirocínio no Brasil do sr.
Lula, acabar de espremer uma nação apática. O sr. Feliz pede “confiança”. O sr.
Contente recomenda “estabilidade”. Eu traduzo: ambos exigem respeitinho. O
respeitinho é muito feio. Se não o perdermos com urgência, vai deixar-nos num
lugar medonho.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
31-12-2023
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-