domingo, 1 de janeiro de 2023

O respeitinho é muito feio

Uma burla com a dimensão da TAP não cabe numa democracia: ou há democracia ou há burla

Alberto Gonçalves

Na terça-feira, em Murça, dois homens abeiraram-se do prof. Marcelo e, em vez de pedirem “selfies”, retribuíram-lhe um milésimo do desprezo que Sua Excelência nos dedica. Para uns, entre os quais me incluo, a cena serviu de consolo, ainda que singular e escasso, pelos vastos enxovalhos presidenciais. Para outros, aquilo foi uma brutal insolência, que não devia ter acontecido e, li algures, no limite não devia ter sido transmitida. Esta escola de pensamento defende, sem assumir que defende, que os poderosos – logo que não sejam de “direita” – merecem a total reverência da ralé. Em tempos, houve uma polícia especialmente empenhada em zelar por isso. Tais cautelas garantem a polidez das massas e, ao filtrar as críticas, permitem aos senhores que mandam continuar a mandar com a desejável impunidade. E incompetência. E arrogância. Em suma, é preciso que os responsáveis pela ruína do país não sejam responsabilizados. Em nome da paz social, é preciso que sejam louvados.

Vem isto a propósito do bonito coro de encómios que, um par de dias decorridos, acompanhou a demissão do ministro Pedro Nuno Santos. Assim sim, é que os grandes estadistas devem ser tratados: o “Pedro Nuno” tem dinamismo, o “Pedro Nuno” tem visão, o “Pedro Nuno” tem iniciativa, o “Pedro Nuno” tem coragem, o “Pedro Nuno” tem o futuro à sua frente. O que fez o “Pedro Nuno” para suscitar tamanha enxurrada de salamaleques? Fora uns desvarios com sucata ferroviária, usou 3.200 milhões do nosso bolso para brincar com a TAP e, quando se aborreceu, devolvê-la ao ponto de partida. Não parece uma proeza formidável. Na verdade, parece configurar uma coisa digna de julgamento, em praça pública ou cave privada. Mas, conforme recomenda o protocolo, o “Pedro Nuno”, que do alto das suas aptidões espera reentrar primeiro-ministro, saiu sob aplausos.

E o patrão do “Pedro Nuno”, que patrocinou com dinheiro alheio a brincadeira da TAP, ficou. Em nações com menor civismo, ou maior quantidade de cidadãos de Murça, o dr. Costa e o governo (desculpem) não ficariam. A TAP poderia ser apenas um pretexto no meio de inúmeros abusos de igual ou superior dimensão, como os 500 mil euros daquela dona Alexandra foram um pretexto no meio do criminoso processo da “companhia de bandeira”, idealmente a meia haste. O certo é que, em qualquer sociedade onde a maioria das pessoas tivesse a vergonha na cara que falta aos políticos, o dr. Costa estaria a esta hora num voo “low cost”, disfarçado e rumo a destino desconhecido. Ou agachado num esgoto, estilo Kadhafi.

Por sorte, os portugueses são parcos em vergonha e ricos em obséquio, natureza que possibilita ao dr. Costa anunciar com doce cinismo que continuará a afundar-nos gloriosamente até 2026, quiçá, confessou ao dr. Balsemão (!), 2030. Francamente, não será necessário tanto. Os avanços em matéria de nepotismo, compadrio, autoritarismo e corrupção, e os recuos na economia, na saúde, no ensino e na justiça já se encontram razoavelmente adiantados. Mais um ano disto e não sobrarão muitos empregos e verbas para distribuir, nem muitas vidas para arrasar. Se o dr. Costa permanecer por aí, movido pelo sentido de Estado que não possui e amparado por um chefe de Estado que não saberia chefiar uma claque de dominó, o único motivo imaginável é o vício do poder, por parte dele, e o vício da submissão, por parte dos súbditos.

Reparem que não falo exclusivamente dos fiéis do PS, ou do PS e das agremiações leninistas, que hoje na AR chegam a três. Vi gente que nunca votaria em nenhum dos partidos acima apresentar o episódio de Murça enquanto um exemplo de inadmissível má-criação. E não, não se referiam à atitude do prof. Marcelo, tipicamente medrosa durante o confronto e insultuosa depois. Com ou sem a ajuda dos “media”, quase todos convertidos à difusão da propaganda oficial, há uma espantosa percentagem da população que continua a defender – e, por pressão, a impor – a cortesia na abordagem a criaturas que inequívoca e drasticamente lhes são prejudiciais. Ninguém pode acusar os portugueses de morder a mão que lhes dá de comer: aqui beija-se a mão que nos rouba a comida.

Além de não se esgotar em personagens menores nem em análises às fascinantes guerrilhas no Rato, uma burla com a dimensão da TAP não cabe numa democracia: ou há democracia ou há burla. À semelhança do que aconteceu com o BES, a EDP e centenas de casos e casinhos, o povo cala-se e calando-se opta por ser burlado. O povo não se pode queixar. Ou melhor: o povo poderia e deveria queixar-se, queixar-se imenso e com proporcional estrondo, queixar-se de modo a criar dez, cem, mil Murças, queixar-se a ponto de fazer tremer as pernas em fuga dos espécimes que o desgraçam.

Mas, por razões diversas ou pura irracionalidade, o povo não se queixa. E os espécimes continuam à solta. E não só à solta: alguns mantêm-se em cargos de decisão. E não só em cargos de decisão: estão prontos para, com pausa para férias e tirocínio no Brasil do sr. Lula, acabar de espremer uma nação apática. O sr. Feliz pede “confiança”. O sr. Contente recomenda “estabilidade”. Eu traduzo: ambos exigem respeitinho. O respeitinho é muito feio. Se não o perdermos com urgência, vai deixar-nos num lugar medonho.

Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 31-12-2023

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