Cesar Maia
1. Restaram dele poucos registros em vídeo, mas diversos em áudio,
preservados. É pena que tanto material se tenha perdido, não apenas no sentido
físico. Pois Lacerda era mestre numa arte que não pode mais ser apreciada na
medida em que também desapareceu – a oratória pública, substituída pela
padronização publicitária e pelos improvisos disparatados. Mas não se imagine
que ele fosse um orador à antiga, com tremulações de voz e sentenças abstrusas.
Ao contrário, contribuiu como poucos para introduzir a linguagem coloquial no
jornalismo e na política.
Lacerda discursa em São
Caetano do Sul, São Paulo, em 1968, durante ato da Frente Ampla, que se opunha
à ditadura militar. Seu poder de atração era sua oratória. Foto: Acervo
UH/Folhapress
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3. A voz de Lacerda era grave, robusta e um pouco anasalada, mas
percorria uma escala ampla de tons, chegando às vezes a um timbre algo
andrógino pela blandícia. Sua entonação, no entanto, em geral era áspera, como
quando, em certos momentos, ele parecia cuspir as palavras com desprezo ou
asco, quase omitindo a sílaba final, conforme o costume carioca. Outras vezes,
para obter um efeito comovente qualquer, sua voz se alongava e perdia volume
até concluir a frase como a onda que alisa a praia. Teve aulas com a atriz
Ester Leão, que se recusou, por motivo ideológico, a treinar a voz de Brizola.
4. Não tinha, aliás, o “s” português (como em festa, “feichta”) nem
o “r” francês (como em porta, “pohta”) de seus conterrâneos, talvez por
exigência dos primórdios do rádio, quando os fonemas deviam se distinguir
nitidamente em meio à estática das transmissões precárias – talvez porque esse
sotaque não fosse tão acentuado nas gerações mais antigas ou em sua família. A
consagração do hábito fazia os cariocas pronunciarem seu nome, conforme
ressaltou o poeta paulista Régis Bonvicino, como se fosse uma palavra só
(“Cahlacehda”), pequena glória desfrutada por raras figuras públicas.
5. Seu melhor retrato pessoal foi traçado em menos de dez páginas
pelo memorialista católico Antonio Carlos Villaça no capítulo “Júlio Tavares”
de seu O Livro de Antonio (74). Villaça era um literato que viveu para
descrever o que via. Seu olhar ávido e inquieto focaliza Lacerda com um
interesse minucioso, quase erótico. Este era tomado por uma “sofreguidão
alucinante”. Sabia “perfeitamente” inglês e francês. Tinha um “ar de rapaz, um
tanto brejeiro, boêmio, leve, livre, sensual”. Gostava de cinema e viagens. Era
um místico que se interessava por espiritismo, astrologia e tinha “tendência
profunda à superstição”. Não sabia nadar, batia furiosamente à máquina com dois
dedos, cozinhava um peixe “temperadíssimo” e gostava “muito de queijos”.
6. Não lhe escapa tampouco a ciclotimia de Lacerda, dado a
trabalhar sem trégua durante dias e noites, para daí desabar, prostrado. Numa
crônica sobre Winston Churchill, que chamava a própria depressão de “cão
negro”, Lacerda admitiu ser vulnerável a suas investidas. Um de seus melhores
contos (parodiado no livro do neto) explora essa metáfora e se chama “Aparição
do Cão Negro”. Seu estado de espírito há de ter piorado no ostracismo, quando
se esfalfava para preencher o ócio e suprir a vocação desperdiçada. A epígrafe
de seu livro Crítica e Autocrítica são dois versos do escritor português Miguel
Torga que costumava citar a próprio respeito: “Podia ser melhor o meu
destino/Ter o sol mais aberto em cada mão.”
7. Revisadas a sua vida e a sombra que ela projetou nos livros, o
que resta ou ressalta? Sua ambição, certamente. Como tantos estadistas, era
escravizado pela necessidade narcísica de liderar a multidão a fim de realizar
obras que lhe valessem a estima pública. Essa ambição talvez fosse, nele,
apenas o mais poderoso aspecto volitivo de uma personalidade inteiramente
consumida pela “sofreguidão” que Villaça identificou. “Sou dos que querem
tudo”, Lacerda escreveu.
8. Escrevia, falava, trabalhava, lia, viajava, comia e comprava com
voracidade (um parente refere a quantidade prodigiosa de presentes que ele
trazia para familiares e amigos quando voltava de viagem). Essa índole se
ambientava bem, por sua vez, numa geração impaciente como a sua – grosso modo,
a dos “tenentes” e dos modernistas –, para a qual o Brasil já perdera tempo
demais no Império e na República Velha, disposta a abrir seus próprios atalhos
para apressar o advento de um futuro sempre adiado.
9. “Depois que se provou o poder, só o poder interessa”, disse
certa vez. Os longos anos na oposição purificaram sua têmpera, fazendo dele o
emissário de um ideal. Após experimentar o fruto tanto tempo proibido – depois
de ser governador e ver sua viável candidatura a presidente esfarelar no
maquinismo da ditadura de 64 –, sua ambição decai em oportunismo e se extravia
no desespero.
10. Ele continua o voluntarista incorrigível e o adversário (e
aliado) perigoso de sempre. Mas antes sua vontade de poder vinha embalada em princípios,
bons ou maus, e sua escalada tinha uma galhardia romântica a que os anos de
ostracismo deram um ar surrado, canastrão. É quando, por exemplo, ele se
aproxima do ministro do Exército do presidente Ernesto Geisel (1974–79), um
obtuso “linha-dura” candidato a suceder ou depor o chefe para reverter a
abertura política, e se envolve com o general António de Spínola, ex-presidente
português exilado no Rio, num plano amalucado para invadir Portugal (então em
pleno desvario revolucionário) com apoio da ditadura brasileira.
11. Legou à linguagem corrente o termo “lacerdismo”, que resume um
moralismo seletivo, praticado contra os adversários do momento, sobretudo na
forma de campanhas jornalísticas devastadoras, baseadas em indícios frágeis e
conclusões precipitadas. Não há como eximi-lo desse pecado, exceto recordando
que quase todos o cometiam, embora com menos paixão e talento, além de outros
pecados piores, dos quais Lacerda nunca foi acusado, como venalidade e até
extorsão. Há quem considere o jornalismo dos nossos dias engajado, parcial,
faccioso, mas a imprensa do século passado não somente incidia nesses
atributos, como costumava ostentá-los com desenvoltura. As apurações eram mais
levianas, as reportagens eram opinativas, os jornais tomavam partido
acintosamente e admitiam pouca ou nenhuma divergência em suas páginas.
12. Jamais alguém levantou contra ele, a sério, alguma denúncia de
corrupção. Nunca dependeu do governo, que atacava de maneira quase sistemática,
mesmo quando correligionários seus o ocupavam. Foi provavelmente o primeiro
político brasileiro a proclamar a educação pública como prioridade máxima. Foi
um dos raríssimos a ter, mais que veleidade literária, um autêntico apetite
intelectual. Seu nome se inscreveria, ainda que não sem controvérsia (como tudo
nele), no panteão dos brasileiros que, sendo os mais capacitados de sua época,
nunca chegaram a presidente: Rui Barbosa, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas.
13. A restauração do capitalismo na Rússia e na China e o
ressurgimento da democracia liberal como fórmula adotada por toda parte
reatualizaram a pregação de Carlos Lacerda, embora não exatamente seus métodos.
O que melhor sobrevive dele foi haver encarnado, em tantos episódios de sua
vida transbordante, um inconformismo essencial e uma altivez de espírito que
percorrem também a crônica de seu avô e de seu pai, como a transmissão de um
impulso intermitente, às vezes errôneo, às vezes inspirador, a empurrar as
gerações e os países.
Título e Texto: Cesar Maia, 27-8-2018
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