terça-feira, 28 de agosto de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Cada um na sua

Aparecido Raimundo de Souza

O AMIGO ESPIGÔNCIO ENCONTRA O FURDÊNCIO que não via há bom tempo, atravessando uma rua movimentada em meio da cidade borbulhante de agitação. Corre a cumprimentá-lo, cheio de entusiasmo e alegria. Fala:
- Furdêncio, quanto tempo! Puxa, você sumiu lá de casa, escafedeu do bairro, deixou de frequentar nossa roda de amigos, não apareceu mais para as peladas dos finais de semana, nem para as cervejinhas geladas no bar do Tucunduva. Cara, você sabe que sempre que pintava no pedaço enchia nossos corações de uma atmosfera de calma e serenidade. O Ambrósio, nosso técnico, pergunta sempre por você. Estamos carentes de um goleiro macho, com garra que pula na bola, que voa que briga pelo time. Hei, espere: o que houve?

Furdêncio responde quase num sussurro enquanto tenta abafar um bocejo inconveniente. Parece esconder uma apreensão atrás de uma máscara de serenidade:
- Nada. Não houve nada.
- Como, nada? Você parece magro, abatido, cansado, sonolento...
- Estou bem, Espigôncio.
- Mesmo?
- Dá para ir empurrando.
- Sinto você diferente. Problemas na família? Dívidas? Falta de dinheiro?
- Qual o quê, Espigôncio, estou legal.
- Conta, me conta as novidades. Como está a comadre?
- Ótima. Aprendendo a tocar acordeom.
- E a minha nora?
- Que nora?
- Ora, ora, Furdêncio. Estou falando da Sandrinha. Você sabe que meu filho Potêncio era... ou melhor, ainda é gamado nela.
- Tinha esquecido...
- Credo, meu chapa. Você não está mesmo legal. Logo você, que dava a maior força para os dois.
- Ainda continuo dando...

- Então, e a Sandrinha? Fale dela.
- Largou a faculdade de comunicação e se matriculou no conservatório.
- Conservatório? Que diabo é um conservatório?
- Escola de música.
- Eu sei que é uma escola de música, ora bolas. Mas logo a Sandrinha, que vivia pelos cantos com o...
- O negócio dela, agora, é saxofone, Espigôncio.
- Legal, legal, cada um na sua. E a mais nova, a minha gatinha Simony?
- Terminou o colegial.
- E segue estudando?
- Não.
- Como não? Por acaso está trabalhando?
- Só em casa.
- E o que a beldade tem feito de bom e de aproveitável?
- Botou na cabeça aprender violino.
- Que barbaridade, Furdêncio. Que gosto mais besta! Ah, o Júnior. Como está o moleque?

- Colado no saco do Russo.
- Russo, que Russo, Furdêncio? – Seja mais claro.
- Um sujeito maluco que se mudou lá para a comunidade. Está ocupando a casa que você morava.
- E o que o Júnior faz grudado nesse tal de Russo?
- Esse rapaz está ensinado o Júnior a tocar tuba. Imagine. Tuba. Pensam até em formar um conjunto. Pelo menos estão bastante animados. Se tudo der certo, o grupo se chamará “Os Tuba&Rões”.
- E desde quando o Júnior é chegado em música?
- Não sei dizer ao certo, Espigôncio, mas a partir do momento que fez amizade com o Russo, a coisa dentro dele aflorou. Agora os dois são unha e carne. Óculos e lentes. Sabe como?
Risos.
- Bem Furdêncio. Apesar de achar você meio devagar, quase parando, olhar perdido, voz cansada, fale um pouco da sua filha predileta, a Leôncia.

- Leôncia mudou muito os modos de tratar. De me tratar, melhor explicando. Um dia teria que acontecer. Era inevitável. Aquele agarra-agarra que tinha comigo, aquele carinho de berço, parece que acabou. Resolveu me trocar pelo Fúlvio. É Fúlvio pra lá, Fúlvio pra cá...
- Fúlvio?
- Isso mesmo.
- De onde surgiu esse Fúlvio?
- É irmão do Russo. O abestalhado toca guitarra. Leôncia botou na cabeça tocar guitarra.
- Você, pelo visto, não gosta muito de guitarra.
- Não, não gosto. Nem um pouco. Espigôncio, nem um pouco.  Tenho verdadeira ojeriza.
- Espere um instante, Furdêncio. Se bem recordo, Leôncia se amarrava no órgão do filho do nosso treinador, o velho Ambrósio. Chegava a ser vidrada. E então?
- Dissesse bem. Chegava!
- Por que chegava?
- Porque o primeiro e o último órgão que ela sentou nele – quero dizer, o derradeiro órgão que ela pegou, de fato, para tocar, foi o do namoradinho, por sinal, na época, o filho do Ambrósio. Quando eles terminaram... logo em seguida, coisa de um mês, um mês e meio, apareceu do nada o Fúlvio, irmão do Russo e agora, andam lá pelos cantos arrancando acordes de tal da guitarra.

- Apesar de achar você troncha, creio que deve estar feliz. A comadre no acordeom, Sandrinha no saxofone, a Simony no violino, o Júnior na tuba e a Leôncia na guitarra... Meu Deus! Acho que a família tem tudo para dar certo e seguir em frente. Quem sabe, amanhã ou depois eu não os veja se apresentando no programa do Faustão, ou no Caldeirão do Huck?
- É verdade, Espigôncio. Espero que sim...
- Furdêncio, saia desse marasmo. Desperta para a vida, homem.
- Estou desperto...
- Espere um minuto. No meio de tantos talentos brilhantes, a prole feliz, realizada, me diga aí: o que é que você está aprendendo com tudo isso?
O desgastado Furdêncio, com cara de cachorro magro perdido na rua, depois de ter caído de um caminhão de mudanças, desaba:
- A sofrer calado, meu nobre. E agora, por final de carreira, a tocar também. Com toda a família, as mãos na massa... que saída me restava? Diga aí. Que me restava?
- Boa terapia. Parabéns. Do fundo de minha alma. Me sinto lisonjeado. Diga lá, não me lembro de você ter falado: o que o meu amigo resolveu tocar?
Furdêncio junta cada restinho de sua coragem para revelar à Espigôncio aquela mais nova decepção:
- Vitrola.


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Sete Lagoas, nas Minas Gerais. 28-8-2018

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