domingo, 7 de março de 2021

[As danações de Carina] O inesperado é como um tornado numa fábrica de vidros — Parte UM

Carina Bratt 

Toda as tardes, a pequena Bela pedia à Cristina, sua mãe, que a deixasse ir lá fora, brincar com as amigas, no comprido da calçada em frente de seu portão. Ela deixava, embora temerosa, tendo em vista uma particularidade meio que estranha houvesse surgido do nada. Coisa de uma semana, ou mais um pouquinho, a menina de apenas seis anos, passara a se portar de uma maneira esquisita e não condizente com a sua idade. De fato, antes deste episódio, Bela brincava com as meninas das casas próximas.


Nos encontros, as jovenzinhas conversavam trivialidades. Falavam de namoricos bobos, de bonecas, de comidinhas, de brinquedos que haviam ganho, ou de presentes que gostariam de ter em seus quartos. Recontavam historinhas de contos de fadas, pulavam corda, se divertiam num gostoso esconde-esconde, jogavam amarelinha, corriam em zigue-zague num pega-pega entre os carros estacionados, depois mudavam tudo para a cabra-cega. e outros folguedos que ponteavam o imaginário da infância.

Exaustas e suando em bicas, quase oito horas, cada uma voltava para a sua residência. Bela, de repente, em vista do tal fato inusitado, passou a ser rejeitada pelas outras. As próprias mães resolveram boicotar estes encontros, não permitindo que as suas filhas se avistassem com a Bela ou com ela se relacionassem. Havia um motivo? Sim. Havia. Bela passara a cantar as canções que embalava com as outras da sua idade sozinha e, pior, a falar, a rir, a gesticular desordenadamente, como se, ao seu lado, tivesse alguém.

Num primeiro momento, foi a Cristina que percebeu. Depois, com o decorrer dos dias, as outras mães, o que acabou redundando num afastamento total. Cristina, preocupada com a filha, saia à janela e, envolta pela cortina da sala, espiava. Bela ‘cantava’, e não só cantava, bailava, os braços estendidos, para algum amigo, ou amiga (sabe-se lá) que ela não distinguia:

— ...Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar...’.

Noutras espreitadas, Cristina observou que Bela dialogava:
— ...Aí ele veio, pediu que ela fosse com ele até o jardim do castelo. Era um castelo antigo, do tipo do Magic Kingdom...’
Até onde ela sabia, Bela nunca lhe falara deste tal castelo. Pesquisou na Internet e descobriu que o mesmo aparecia num desenho clássico de Walt Disney. Pertencia à Cinderela. Até aí, tudo bem. Toda criança da idade da sua filha, tinha conhecimento da existência da Cinderela e sonhava com castelos encantados. O que passou a chamar a atenção de forma mais acentuada da Cristina: Bela passou a andar de um lado para outro, de mãos dadas, indo até a esquina e voltando, como se alguém a segurasse.

Ficou pasma, assombrada, espantada e fora de si, quando viu a filha ser colocada em cima do muro que circundava a sua casa, de costas, como se uma pessoa a tivesse pego e a deixado ali sentada. Nos dias seguintes, a criança passou a andar se equilibrando por sobre o mesmo muro, de um lado para outro e, sem mais nem menos, voltava ao chão, como se levitasse. O que mais a deixou boquiaberta. Havia uma goiabeira, do outro lado da rua, em frente a outra habitação. Bela subiu e, tão logo chegou lá em cima, pulou, caindo em câmera lenta, sem claro, sofrer um arranhão. Nervosa, tremendo, Cristina ligou para Ana Rosa, uma vizinha que não tinha filhos. Ana Rosa morava sozinha e se constituía na única pessoa capaz de lhe dar crédito e acatar, ou aceitar, o que quer que fosse visto, sem duvidar das palavras de Cristina.

Ainda que não enxergasse nada, não titubearia em dar todo crédito e apoio à mãe de Bela. Assim foi. Ana Rosa veio à casa da amiga, e então viu e ouviu. Tornou, em outras oportunidades a ver e a rever. Ficou tão apavorada, que na terceira vez se benzeu. Fez uma oração ajoelhada junto com a mãe da menina e pediu ao Mestre Jesus que cuidasse daquela pequena alma que parecia ‘endemoniada’. Nos dias que se seguiram, Ana Rosa fez questão de voltar e orar com Cristina, para que ‘fosse lá o que tivesse acontecendo com a pequena Bela’, que Jesus afastasse todo mal de seu caminho.

Neste interregno, na visão deturpada da rua, os vizinhos que cruzavam, indo ou vindo, igualmente se alarmaram, se assarapantaram. Outros, mais afoitos, saíram às carreiras, gritaram impropérios e até proferiram insultos ao se depararem com as proezas pouco habituais da garota. Os mais desajuizados davam a volta por outras vielas gritando um ‘Creio em Deus Padre’, quando a viam subir e descer do muro, ou a ensaiar pequenos voos rasantes, como se um ser que não se deixasse ver, a sustentasse evitando uma queda contra o chão de cimento.

Não demorou muito, a notícia da menina tida como ‘maluca’, do pedaço correu as redondezas e se espalhou. Alguém teve a infeliz ideia de ligar para o jornal local. Outro morador comunicou o fato à emissora de rádio. Conclusão: num abrir e fechar de olhos, a frente do domicílio de Cristina e Bela, até então calmo e tranquilo, virou uma confusão desordenada de repórteres e fotógrafos. O bairro sossegado e sereno, se transformou numa vozearia confusa, numa balbúrdia desordenada, com jornalistas e fotógrafos disputando cada centímetro, cada pedaço e o melhor ângulo para melhor poderem escrever as suas matérias e enviar para os periódicos que os enviaram até aquela localidade.

Domingo que vem, 14, a segunda e última parte.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 7-3-2021

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3 comentários:

  1. Protesto!
    Esperar uma semana para saber o destino da "louquinha", é torturar o leitor!
    Prometi a mim mesmo que não lerei, embora não confie em promessas que faço.
    Desde quando na adolescência registrava cada vez que me masturbava, e levava ao paciente padre Hass , no confessionário, aos sábados, prometendo que seria a última vez!!

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  2. Nossa Can quero ver logo o disfeixo da vida dessa linda menina não demora estou ansiosa pelo final. Beijos Josiane Neves.

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  3. Calma, meus caros e queridos leitores. Domingo que vem, todos conhecerão o final da história. Vou deixar o lep livre, ou meu patrão Aparecido não envia o texto de amanhã para o nosso amigo Jim. E euzinha, não quero perder o emprego.
    Carina Bratt
    Ca
    da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

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