sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] O caso do porco subtraído

Aparecido Raimundo de Souza

O TÚLIO RESOLVEU entrar no sítio do velho Siqueira que criava porcos para abate e levar, na mão grande, um dos milhares que ele mantinha nos chiqueiros. Como a divisa da quinta do sujeito ficava perto da herdade onde morava com os pais, o criador de galinhas e plantador de café Bartolomeu Carrancudo, o rapaz fez um planejamento bem simples e objetivo para não ser pilhado em flagrante e tudo que esquematizara rolasse por água abaixo. No dia que botou na cachola ser o momento propício, se alinhavou para praticar, sem mais delongas, o que levou quase um mês sopesando pós e contras. 

Esse dia seria o domingo. Geralmente, nos finais de semana os empregados do comerciante (como os de seu pai) relaxavam a guarda, o que lhe daria uma excelente margem para penetrar nas contiguidades do velhote e subtrair um dos animais sem ser apanhado com a boca na botija. Portanto “flexível a investida”, concluiu satisfeito e seguro de si. Esperou dar meia noite. A partir daí, se armou de uma lona de plástico, pegou seu pequeno caminhão e partiu para o desafio. Já em terras alheias, se protegendo entre árvores, caindo aqui, tropeçando ali, chegou, finalmente, aos barracões onde ficavam instaladas as pocilgas. 

Em meio a enorme manada dos “sus scrofa domesticus” que se descortinou à sua frente, Túlio carecia, no menor tempo possível, escolher um quadrúpede artiodactilo que não fosse muito obeso para ser melhor transportado, uma vez que seu regresso até onde deixara o transporte amoitado, se daria pela mesma leiva, todavia, aquela hora da noite, totalmente desconhecida. Havia um outro detalhe que não poderia ser esquecido. Talvez o pior deles. Dependendo do peso do bunodonte “escolhido” —, a sua caminhada se faria duplamente penosa. Baseado nessa teoria da balança invisível, pinçou o “doméstico” que achou moleza conduzir a sua “barrilesca” carga sem muito esforço. Com ele em volta do pescoço, embrulhado no plástico que trouxera, tratou de picar a mula. 

Não contava com um pormenor. O infeliz do suíno “rufião” chafurdado em excrementos os mais diversos, tranquilo e em paz, retirado assim, à força, sem prévio aviso, no cômodo do descanso, em seu persigal, é lógico, ao se ver fisgado, se abriu endoidecido em sons engraçados e bizarros. A voz do cerdo é, por natureza, um tanto esquisita, e, de certa forma, excêntrica. Ao se sentir em perigo iminente, o coitado mandou vê num enraivecido iiihhh... iiihhh... iiihhh... iiihhh... quebrando a quietude silenciosa da noite lúgubre e entenebrecida. 

Na revinda, Túlio usaria a mesma picada de acesso. Não tinha como atalhar. Por conta, o medo enorme que sentia em ser pego por funcionários triplicou. Afora isso, levado pela chatice enervante do mamífero resmungando atabalhoadamente, por entre guinchos e grunhidos, tais cantorias deixavam os seus nervos frangalhados, ou melhor, emporcalhados.
— Cala essa matraca. — Observou a certa altura. Precisa ficar dando banda com esses sons aborrecidos em meus ouvidos?

O rapaz cochichava com o Suidae como se a criatura fosse alguém de entendimento pleno que pudesse ouvir e assimilar os seus clamores e, por conta, no minuto seguinte, obedecer e fechar o comedor de lavagens. Faltava pouco para chegar ao marco que estabelecia os limites da saída e ganhar a liberdade. A alguns passos de colocar os pés para o sucesso da missão, jogar o porco na carroceria do seu VUC, da JAC, um V260 e dar partida no motor, faróis e lanternas se acenderam inundando (como se dia fosse) a escuridão mansa da noite amena.

Rifles apareceram do nada, apontados para a sua cabeça. Ouviu, entre risos e chacotas, a voz do homem que identificou, de primeira: ali estava, em carne e osso, o velho Siqueira, ou como todos, na localidade, o chamavam pelas costas, de “Napoleão”.
— Alto lá, seu ladrãozinho barato. Fique onde está. E antes que eu ordene a meus empregados que lhe deem uma lição inesquecível, me esclareça uma dúvida cruel: onde pensa que vai com o meu porco?

Túlio se deteve apavorado. As duas mãos a segurarem o gorduchinho desviado que viajava às costas, aos berregos, passaram a tremer desordenadamente. Com a quebra da compostura, exatamente pelo envergonhamento de ter sido pilhado com o produto do crime grudado em seu suor, a sua fortaleza desmoronou. Em trote idêntico, sem ter como se segurar, uma súbita incontinência urinária e fecal lhe fez mijar pernas abaixo, e, em seguida, borrar as calças de merda, numa espécie de desarranjo intestinal surgido de modo imprevisto.
— E ai, seu ladrãozinho de meia tigela — repetiu a voz, desta vez mais forte. Responda: onde pensa que vai com o meu porco?

O desditoso, além da falta de paciência (o Landrace não dava trégua, parecia estar cantando, em repeteco, “O Porco”, do Beto Jamaica), e, sobretudo, aviltado em não conseguir se premunir até a “moita” mais próxima, também viu lhe escapar, de roldão, a voz. Afônico, balbuciou, mais assaparantado que um rato solitário a se ver diante de uma gataria pronta para manda-lo para a barriga:
— Por... por... por... co... se.... seu... Si... Si... Si... quei... ra... que por... cooooooo...?!

Final da história: Tulio levou uma surra memorável dos peões do estancieiro. A parcela da coça se fez sem perdão, ou seja, mais dupla e atordoante, notadamente quando os esculcas identificaram o larápio e comunicaram ao patrão que o “meliante”, não outra figura, senão um dos filhos do Bartolomeu Carrancudo, seu amigo do peito e confinante por aquelas paragens.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 14-1-2022

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