Se a extrema-esquerda se esfumar, o fumo é meramente formal. Na prática, a chama da irracionalidade mantém-se acesa em zonas demasiado vastas da sociedade, que o PS não se importará de acolher
Alberto Gonçalves
Nas últimas semanas, a invasão da Ucrânia revelou a alguns portugueses a natureza do PCP e do BE. É estranho ter sido preciso chegar a 2022 para se perceber que o desígnio de ambas as seitas sempre consistiu em demolir o que outrora se designava por “modo de vida ocidental”, e que qualquer tirano que se proponha fazê-lo merece o aplauso assumido da primeira seita ou dissimulado da segunda. Mas a compreensão lenta é um direito dos povos. E esmiuçar esse processo é o nosso dever: o que mudou? O que levou a que os dois partidos comunistas perdessem boa parte do respeito de que inexplicavelmente beneficiavam por cá?
Por um lado, houve a
circunstância de o país atacado ser, numa interpretação algo solta, uma
democracia europeia, propensa a partilhar conosco aliados e alianças. As
semelhanças com Portugal permitiram deduzir a atitude de PCP e BE caso, por
absurdo, os invadidos fôssemos nós – e não seria uma atitude especialmente
patriótica. Se eles desprezam a Ucrânia por sonhar com a pertença à NATO, é
natural que abominem os respectivos membros fundadores e lhes desejem os piores
castigos, incluindo um Putin, dois Godzilla ou três meteoritos. Naturalmente em
nome da “paz”.
Por outro lado, talvez o mais
decisivo, os “media” caseiros por uma vez repararam na inclinação franca ou
disfarçada daquela gente por regimes totalitários. E transformaram-na em
notícia. E depois em notícias alusivas a trapalhadas legais e éticas, assaz
alheias à guerra. E depois na disseminação de uma suspeita: a de que, ao invés
do que tantos pensavam, os bandos de leninistas não pairam acima dos mortais
nem são pessoas ou instituições especialmente confiáveis. De repente, PCP e BE
passaram a merecer pelo menos um bocadinho do escrutínio de que, ao contrário
da “direita”, escapavam há décadas. Ao fim da impunidade, eles chamam
“perseguição”, embora o termo correto seja “justiça”.
O que mudou foram principalmente os interesses do PS, que há pouco saiu de eleições com maioria folgada e a expensas da erosão das agremiações à sua esquerda. Se é evidente que os socialistas já não carecem de penduricalhos para governar, é natural que queiram garantir que não voltam a carecer: além de torrar os milhões do PRR, um dos objetivos do PS é aproveitar a deixa para reduzir os penduricalhos a pó, ou quando muito a dois ou três deputados “simbólicos”. O resto, aconselhava uma cantiga horrenda, basta imaginar. Imaginem, só por piada, que a generalidade dos “media”, que genericamente depende do PS para subsistir, recebeu ordens expressas ou tácitas para colaborar no exercício. Com boa vontade, a coisa faz-se.
Por que é que não se fez
antes? Porque, não desvalorizando os excelentes esforços do eng. Sócrates e dos
seus empregados, até 2015 o PS não controlava uns 90% dos “media” como controla
agora. E porque de 2015 até agora o PS não podia arriscar conflitos com PCP e
BE. Agora, é quase inevitável que o PS aspire a engolir em definitivo o
eleitorado comunista. E não é improvável que o eleitorado comunista, habituado
a engolir o que calha, engula o PS.
Os politólogos, que são os
“especialistas” que encheram fugazmente as televisões entre o sumiço dos
“especialistas” em Covid e o despontar dos “especialistas” em geoestratégia,
fartaram-se de amanhar explicações para o desastre eleitoral do PCP e do BE.
Esqueceram-se de uma, a de que hoje não custa a um comunista votar PS na medida
em que, para efeito de assuntos internos e gestão corrente, o PS atual não anda
longe do comunismo. A título de exemplo, veja-se a cambalhota do partido face
ao 25 de Novembro, que apoiou decisivamente em 1975 e rejeita com certo asco
nos tempos que correm.
Com maior ou menor
“pragmatismo”, o PS do dr. Soares consagrou-se contra o comunismo. O PS do dr.
Costa, do rapaz da TAP e dos pequenitos da JS consagrou-se a favor, com
ligeiras – e hesitantes – ressalvas em matérias internacionais (o dinheiro, que
dá jeito, obriga ao verniz “civilizado”). A exposição dessas ressalvas, a
propósito da questão ucraniana, coincidiu com o turbilhão de 30 de janeiro e
ajuda o PS: enquanto anula os penduricalhos no futuro, apaga as intimidades que
com eles manteve no passado. Se o passado é recente, a memória é fugaz.
Em circunstâncias normais,
estaríamos a celebrar o plausível desaparecimento da extrema-esquerda, cuja
velha e grotesca influência é a principal causa do nosso atraso. Nas
circunstâncias vigentes, não se recomenda celebrar nada. Se a extrema-esquerda
se esfumar, o fumo é meramente formal. Na prática, a chama da irracionalidade
mantém-se acesa em zonas demasiado vastas da sociedade, que o PS não se
importará de acolher. E as cinzas serão as do país, bem capaz de se desgraçar
sozinho num mundo em combustão. O PCP e o BE perderam. O comunismo não perdeu.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
19-3-2022, 0h21
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