terça-feira, 3 de maio de 2022

[Estórias da Aviação] Sonhos e pesadelos

José Manuel

Então, em julho de 1972, lá fui eu curtir as minhas primeiras férias na Europa.

Os primeiros doze dias em Portugal, foram o início daquele sonho acalentado desde 1954, quando por mares muito navegados, sem armas nem barões assinalados aportei à ocidental praia carioca, pelas mãos da minha mãe, então faltando dois meses para os oito anos de idade.

Dezoito anos anos depois tinha que dar tudo certo outra vez e a viagem, foi toda milimetricamente planejada.

Os primeiros doze dias, correram tudo mais do que planejado, diria até que excederam minha expectativa.

A seguir, tinha ainda dezoito dias para me entregar nos braços luxuriantes de Paris e da francesinha "très charmante” que havia conhecido num voo de Belo Horizonte.

Não tinha a menor ideia do que iria me acontecer naquela segunda etapa, mas se em Portugal havia sido um sucesso, a França, posso dizer que foi uma apoteose, pela belíssima recepção que tive, pelos passeios e lugares maravilhosos onde fui levado, pelos encantos da "petite" que me enfeitiçou dentro de um Avro no Brasil, e pela sua família extremamente acolhedora.

Foi por um triz, que não acabei ficando por terras Napoleônicas, até porque seus pais gostaram bastante de mim e achavam mesmo que aquela viagem era um pedido de casamento.

Daqui a pouco eu conto!

Só acabei não ficando por lá, porque estava no meio do meu curso de piloto privado, e uma das noites no simpático hotel onde fiquei, tive um pesadelo terrível, em que não voltava mais ao Brasil e às praias que tanto amava. Acordei banhado de suor e um susto terrível.

Desisti naquela manhã mesmo de ser mais um dos "enfants de la patrie".

Há um ditado que diz que em time que está ganhando não se deve mexer.

No meu projeto de férias, estava prevista uma esticada até Londres, mas se estava tudo tão gostoso em Paris, para que eu iria ir rumo ao desconhecido?

Pois é, mas fui.

A VARIG à época tinha duas frequências semanais para Londres, a partir de Lisboa e Paris. Então, num determinado dia fui pra Londres com a certeza de passar pelo menos quatro dias na terra da Rainha.

Quando embarquei em Paris, encontrei uma colega de turma que vinha do Brasil, iria passar férias em Londres e logo imaginei que a minha sorte continuaria.

Uma vez no aeroporto, pegamos um taxi para a residência de uns amigos que segundo ela eu iria poder me alojar também.

Só que não!

Era uma república, barra muito pesada, e como na época não existiam telefones celulares ao que tudo indicava, usavam sinais de fumaça, muita fumaça espessa para se comunicar.

Como não era esse exatamente o meu caso, chamei um táxi, e fugi de lá o mais rápido possível.

No trajeto para Picadilly Circus, comecei a imaginar o meu roteiro para aquele dia e mal sabia que mais um pesadelo estava para me acontecer.

Com o mapa da cidade na cabeça, sabia que o centro comercial forte ficava entre Picadilly, Regent Street, Oxford Street, Carnaby etc., tracei um roteiro de compras, pois ainda era cedo e mais tarde me preocuparia com o hotel para descansar.

Só não me lembrei de um dado que ninguém em sã consciência em Londres pode esquecer. O mês de julho! Quase no início do verão europeu!

Lá pelas seis horas da tarde, cheio de compras, máquinas de filmar e fotográfica a tiracolo, e já com bolhas nos calcanhares de tanto andar, resolvi procurar um hotel.

Hotel? Onde?

De uma espelunca a um cinco estrelas, todos apresentavam garbosas placas nas portas, " NO VACANCY ".

Depois de andar “Miles" e travar encontro com o famoso fog londrino, às 23:30 daquela noite, comecei a pensar seriamente na minha condição sem dúvida alguma, de um “Hotel Less".

E era a mais pura verdade! Mas, como Deus nunca me abandona, lá pelas tantas entrei por uma pequena rua toda arborizada e iluminada e considerei seriamente dormir em um dos bancos da pracinha em que estava.  Então me sentei para relaxar, inclusive colocar um band-aid nas bolhas dos calcanhares, quando me levantei a cabeça e inacreditavelmente estava na frente de uma casa com as portas abertas, iluminada e jovens entrando e saindo.

Olhei melhor e vi uma placa iluminada acima da porta: "CASA DO ESTUDANTE BRASILEIRO".

Das duas uma, ou eu já estava delirando ou a fumaceira lá da república da minha colega estava fazendo efeito retardado!

Mas não era, tomei fôlego e subi as pequenas escadas entrando naquele Hall cheio de brasileiros estudantes, me jogando numa das poltronas vagas, de tão cansado que estava. Era uma turma de estudantes mineiros que estavam lá e logo me rodearam, talvez pela minha aparência caída, querendo saber o que estava acontecendo comigo.

Contei tudo e pedi que me ajudassem a ficar naquela poltrona só por aquela noite e que pagaria por aquilo.

Logo se identificaram com aquela minha situação e foram falar com a diretora, para que eu lá ficasse.

A Diretora não permitiu porque eu não era estudante e lá era um órgão do governo brasileiro.

Sem querer provoquei um tumulto, pois todos deixaram claro que de lá eu só sairia para um hotel.

Então ela me levou ao seu escritório e ficou horas telefonando até encontrar uma vaga numa hospedaria numa das ruas laterais ao Hyde Park.

Havia conseguido finalmente!

De lá tomei um taxi para a hospedaria, me registrei e, quarto indicado entrei acendendo a luz.

Só deu para divisar a cama vaga dentre muitas e quase que objetos voaram na minha cabeça, além dos impropérios, claro.

Meu Deus, o que eu tinha ido fazer em Londres? Deitei-me e acordei na mesma posição com as bolsas amarradas ao meu corpo! Céus que horror, foi aquilo!

Acordei, se aquilo poderia se chamar de acordar, numa balbúrdia generalizada, pelas 8h30, fugi daquele lugar péssimo e só parei numa coffee-shop, para tomar um café.  Fazia vinte e quatro horas que havia chegado à cidade da Rainha.

Dali mesmo, peguei um taxi para o aeroporto, mas o taxista indiano, antes resolveu dar uma passadinha na Escócia, só para que eu nunca mais me esquecesse da bela recepção inglesa.

Chegando ao aeroporto, consegui depois de muita conversa trocar minha passagem da Varig que só viria dali a três dias, por uma passagem British e antes do almoço estava beijando o solo do aeroporto de Orly.

Apesar de toda essa confusão, fiz excelentes compras para mim, para minha família, e para a família da “Petite". Foi aí que percebi que eles não haviam entendido muito bem as minhas oferendas, pois apenas quis ser amável e retribuir a atenção recebida.

Logo comecei a perceber pelos olhares, que iria acabar tendo que cantar a Marselhesa em algum templo gótico da “Provence".

Restou uma amizade gostosa até hoje.

Título e Texto: José Manuel – por muito pouco estaríamos lendo isto tudo… em francês!! MERCI! Abril de 2022 

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