terça-feira, 1 de novembro de 2022

E agora?

Há inspiradoras páginas na história que precisam ser reabertas hoje para que possamos seguir de cabeça erguida diante dessa eleição presidencial, talvez a mais suja da história do país


Ana Paula Henkel

E agora seguimos.

Sim, a ressaca moral hoje não está fácil. Mas nós precisamos seguir. Há inspiradoras páginas na história que precisam ser reabertas hoje, 31 de outubro de 2022, para que possamos seguir de cabeça erguida diante dessa eleição presidencial, talvez a mais suja da história do país.

Para mim, em um dia terrivelmente triste que pode nos deixar sem esperanças e sem boas perspectivas para o futuro, acessar nossa assembleia de vozes pode nos ajudar a sair desse transe de não querer acreditar que o país elegeu um ex-presidiário para presidente do Brasil com a ajuda de nossa Suprema Corte.

No final da primavera na Europa de 1940, as potências europeias ainda estavam engajadas no que havia sido apelidado de “Phoney War”, um período de oito meses no início da Segunda Guerra Mundial, durante o qual houve apenas uma operação militar terrestre limitada na Frente Ocidental, quando as tropas francesas invadiram o distrito de Saar, na Alemanha. Apesar da invasão da Polônia pela Alemanha em setembro de 1939, a França e a Grã-Bretanha fizeram pouco mais do que reunir tropas do seu lado das linhas defensivas e olhar com raiva para as de Adolf Hitler. Mas em 10 de maio, os alemães lançaram um ataque blitzkrieg à Holanda e à Bélgica; em 15 de maio, eles romperam as defesas francesas e viraram para o Canal da Mancha. Dentro de uma semana, cerca de 400 mil soldados aliados — compreendendo a maior parte das Forças Expedicionárias Britânicas, três exércitos franceses e os remanescentes das tropas belgas — foram cercados na costa norte da França, concentrados perto da cidade costeira de Dunquerque. (Vale a pena assistir a cada segundo do extraordinário Durnkirk, filme de 2017, dirigido pelo inglês Christopher Nolan.) 

Em 4 de junho de 1940, conhecido hoje como o dia da sobrevivência para milhares de soldados britânicos, a tripulação do navio Medway Queen estava levando uma carga extraordinariamente grande de suprimentos para sua próxima missão. Walter Lord, autor do inspirador livro O Milagre de Dunquerque, conta que o assistente do cozinheiro chegou a comentar que havia comida suficiente a bordo para alimentar um exército. Mal sabia a tripulação, mas o Medway Queen estava prestes a ser enviado através do Canal da Mancha em uma das missões de resgate mais ousadas da Segunda Guerra Mundial: a Operação Dynamo, mais conhecida como a evacuação de Dunquerque.

Quando a Operação Dynamo começou, no final de 26 de maio, os oficiais britânicos encarregados de organizar a fuga frenética estimaram que apenas 45 mil homens poderiam ser salvos. Mas, nos oito dias seguintes, quando mais de mil navios britânicos — militares e civis — cruzaram o Canal repetidamente para resgatar mais de 330 mil pessoas, enquanto a Royal Air Force lutava contra a Luftwaffe nos céus. Outros 220 mil soldados aliados foram resgatados dos portos franceses de Saint-Malo, Brest, Cherbourg e Saint-Nazaire pelos britânicos.

Os eventos do fim de maio de 1940 tornaram-se lendas — os pequenos navios e barcos civis pilotados por cidadãos eram ignorados pelas forças alemãs. Muitos dos navios civis eram tripulados por oficiais da Marinha que se revezavam incansavelmente na rota para resgatar os soldados. Nas praias de Dunquerque reinava o caos. Os soldados formavam filas no mar ou no cais leste e ficavam em seus lugares por até três dias, sem dormir, comer ou beber. Durante todo o tempo, aviões alemães lançaram bombas na praia e nos navios que tentavam resgatar os homens. Um soldado chamado Brian Bishop, que embarcou no Medway Queen em 1º de junho, descreveu a terrível experiência de esperar para ser resgatado:

“O cais foi bombardeado em vários lugares e através das lacunas foram colocadas pranchas de madeira. Era difícil carregar macas ao longo do caminho e depois ter de levantá-las na altura dos ombros pelas pranchas de embarque. Assim que conseguimos chegar perto do navio, um oficial examinou nossa maca e disse: ‘Ele está morto, tire-o da maca e traga outro'”.

Agora lutaremos nos mares e oceanos. Lutamos com confiança e força. Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutamos nos campos e nas ruas

Dunquerque bombardeada, 1940

Mesmo depois que Bishop chegou ao navio, os soldados não conseguiram evitar entrar em pânico quando os aviões alemães sobrevoaram, bombardeando e metralhando o barco durante sua viagem pelo Canal. “Quando fomos atacados nas primeiras vezes, todos correram para um lado ou para o outro quando os aviões se aproximavam.”

Embora a viagem levasse algumas horas em cada sentido, o processo de carregamento podia ser demorado e às vezes exigia a retirada de homens de outras embarcações de resgate que foram atingidas por aviões alemães. Barcos de todos os tamanhos iam e vinham pelo Canal da Mancha a qualquer hora do dia, indo o mais rápido possível para resgatar o maior número possível de soldados.

A evacuação de Dunquerque inspirou um dos discursos mais dramáticos da história da humanidade. Quando `entrou na Câmara dos Comuns em 4 de junho de 1940, ele tinha muito o que discutir. Os Aliados tinham acabado de realizar o “milagre de Dunquerque”, resgatando cerca de 338 mil soldados de uma situação terrível na França. Depois de operações que encurralaram os soldados aliados na costa francesa, os nazistas estavam a poucos dias de entrar em Paris. Churchill sabia que precisava preparar seu povo para a possível queda da França. Ele também sabia que tinha de enviar uma mensagem impactante de resiliência diante da aflição da clara derrota, mesmo que momentânea, para todos.

O que se seguiu foi seu agora famoso discurso “Vamos lutar nas praias”, considerado um dos discursos mais inspiradores da Segunda Guerra Mundial. Embora grande parte do discurso se refira às recentes perdas militares aliadas e a uma reflexão sobre o caminho desafiador à frente, ele é mais lembrado pela promessa apaixonada de Churchill de lutar em mares, oceanos, colinas, ruas e praias — além de “nunca se render”. O discurso foi emendado em inúmeros documentários e recriado em vários filmes, incluindo o próximo filme biográfico de Churchill, Darkest Hour. Mas a história coloriu as lembranças dessa oração da maioria das pessoas. As palavras não foram o impulso moral imediato que imaginamos e, na verdade, deprimiu alguns britânicos. Mas tocou, sem dúvida, os norte-americanos que ainda estavam assistindo à guerra do lado de fora.

Depois que a evacuação de Dunquerque foi concluída, Churchill teve um tom muito específico para abordar seu discurso em 4 de junho. Ele também teve de se dirigir a um aliado relutante nos Estados Unidos: Franklin Roosevelt. Grande parte do público norte-americano ainda hesitava em se envolver na guerra, e Roosevelt tentava não irritar os isolacionistas enquanto montava uma campanha de reeleição. Mas Churchill, no entanto, viu uma oportunidade para fazer um apelo.

Churchill baseou-se em sugestões de seus secretários particulares e assessores de gabinete na formulação de seu discurso. No livro The Roar of the Lion: The Untold Story of Churchill’s World War II Speeches, Richard Toye cita uma nota de William Philip Simms, editor de jornal nos EUA, que parece ter sido particularmente influente. Simms escreveu que Churchill deveria transmitir “aconteça o que acontecer, a Grã-Bretanha não hesitará” e enfatizou: “Desistir – JAMAIS!”.

No discurso final de Churchill, ele fez uma recapitulação detalhada da batalha de Dunquerque, elogiando todos os membros das forças aliadas. Mas ele não se deteve nas vidas salvas. Ele alertou que o resgate “não deve nos cegar para o fato de que o que aconteceu na França e na Bélgica é um desastre militar colossal”. A invasão, ele insistiu, pode ser iminente. Mas ele estava pronto para lutar. “Vamos até o fim”, disse Churchill. “Lutaremos na França, lutaremos nos mares e oceanos, lutaremos com confiança crescente e força no ar, defenderemos nossa Ilha, custe o que custar, lutaremos nas praias, lutaremos nos lugares de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos!” 

Sir Winston Churchill, em 1941 | Foto: National Portrait Gallery (London)/Wikimedia Commons

Sim, hoje é um dia difícil para todos os brasileiros que alertaram e lutaram contra um projeto de poder nefasto que pode engolir o Brasil com a volta de um ladrão, corrupto, descondenado, ex-presidiário e chefe de organização criminosa ao poder. Mas é nas páginas da história que podemos dar o correto senso de proporção de uma ressaca moral que pode receber uma injeção de perspectiva de reação, e o que bravos homens passaram para que pudéssemos estar aqui gozando de plena liberdade, mesmo em tempos perigosos de tirania judiciária no Brasil.

No final da batalha de Dunquerque, 235 navios foram perdidos, com pelo menos 5 mil soldados. Os alemães conseguiram capturar 40 mil soldados. Mas, embora a operação tenha sido uma retirada com pesadas baixas, o resgate de quase meio milhão de soldados de Dunquerque passou a ser uma das vitórias mais importantes e inspiradoras da guerra — e pode muito bem ter mudado seu resultado. Dunquerque — uma derrota histórica — foi o começo do fim do Terceiro Reich.

Pelo legado de cidadãos comuns que atravessaram o Canal da Mancha para salvar outros bravos homens, nossa defesa do Brasil começa HOJE – 31 DE OUTUBRO DE 2022.

Pela herança que recebemos de hombridade, coragem e resiliência — e que devemos proteger e passar aos nossos filhos para que façam o mesmo – nós não devemos enfraquecer ou fracassar. Iremos até ao fim.

E agora?

Agora lutaremos nos mares e oceanos. Lutamos com confiança e força. Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutamos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas, lutaremos nas escolas, nos jornais, nas redes sociais. Lutaremos no Senado e na Câmara. E nunca, jamais nos renderemos.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 136, 31-10-2022

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2 comentários:

  1. Me veio a mente, aquele poema intitulado "José" de Carlos Drummond de Andrade. Foi publicado originalmente em 1942, na coletânea "Poesias". Ilustra o sentimento de solidão e abandono do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de que está perdido na vida, sem saber que caminho tomar. O "José" de hoje, não. Esse cidadão não está abandonado, não tem sentimento de solidão, nem vive a sensação de estar ou se achar perdido, como um cego em meio de um tiroteio. O "José" de 78 anos atrás era um burro. O de hoje, não. Esse tem visão... é inteligente, esperto, safo, enxerga o futuro como deve ser enxergado.

    José

    E agora, José?
    A festa acabou,
    a luz apagou,
    o povo sumiu,
    a noite esfriou,
    e agora, José?
    e agora, você?
    você que é sem nome,
    que zomba dos outros,
    você que faz versos,
    que ama, protesta?
    e agora, José?

    Está sem mulher,
    está sem discurso,
    está sem carinho,
    já não pode beber,
    já não pode fumar,
    cuspir já não pode,
    a noite esfriou,
    o dia não veio,
    o bonde não veio,
    o riso não veio,
    não veio a utopia
    e tudo acabou
    e tudo fugiu
    e tudo mofou,
    e agora, José?

    E agora, José?
    Sua doce palavra,
    seu instante de febre,
    sua gula e jejum,
    sua biblioteca,
    sua lavra de ouro,
    seu terno de vidro,
    sua incoerência,
    seu ódio — e agora?

    Com a chave na mão
    quer abrir a porta,
    não existe porta;
    quer morrer no mar,
    mas o mar secou;
    quer ir para Minas,
    Minas não há mais.
    José, e agora?

    Se você gritasse,
    se você gemesse,
    se você tocasse
    a valsa vienense,
    se você dormisse,
    se você cansasse,
    se você morresse...
    Mas você não morre,
    você é duro, José!

    Sozinho no escuro
    qual bicho-do-mato,
    sem teogonia,
    sem parede nua
    para se encostar,
    sem cavalo preto
    que fuja a galope,
    você marcha, José!
    José, para onde?
    Aparecido Raimundo de Souza
    de Campinas, São Paulo

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  2. Esqueci de dizer o que significa "TEOGONIA" citado no poema José.
    Theos, deus + genea, origem / Refere-se a gêneses dos Deus e sobre a origem do mundo. É um conjunto de deidades (conjunto de forças ou intenções que materializam a divindade), que formam a mitologia (estudo das lendas / história de uma cultura em particular), de um povo.

    Teogonia de Hesíodo - Trata da gênese dos deuses, descreve a origem do mundo, os reinados de Urano, Cronos e Zeus, e a união dos mortais aos deuses, desta forma nascendo os heróis mitológicos.
    O José de 1942 não sabia. O de hoje, sabe menos ainda.
    Aparecido Raimundo de Souza.
    de Campinas, São Paulo.

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