domingo, 9 de abril de 2023

[As danações de Carina] Deu errado

Carina Bratt 

EUCLIDES chegou na igreja meio que atrasado. Deu uma olhadela geral como se seus olhos fossem vassouras imensas varrendo cada cantinho do santuário. Estavam todos os assentos tomados pela multidão. Grosso modo, tinha gente saindo pelo ladrão. Nenhum lugar para se acomodar. Todo domingo a mesma cena se repetia.

Euclides gostava de se prostrar na frente, primeiro banco, de cara para o altar. A ponto de, se o padreco soltasse um pum, ele cheiraria. Um espirro, que fosse, gritaria, ‘saúde, meu santo homem’. Nessa busca incansável, não se deu por vencido. Foi lá, veio cá, veio cá, foi lá, nada.

Tornou a refazer o caminho comprido, que se iniciava na porta principal do templo e findava nos pés do púlpito. A celebração religiosa começaria em menos de um minuto. O evangelizador, frei Espinhoso Ducano, desde que assumira os trabalhos da paróquia, seguia os rituais à risca.

Não atrasava. Nem que chovesse canivete ou qualquer outro instrumento de corte. Por assim, caísse tempestade ou fizesse sol, às oito horas em ponto, a glorificação de domingo impreterivelmente tinha início. De repente, Euclides deu de chofre com um sujeito careca e baixinho, de corpo minguado, vestido de preto.

Espiou bem, esticou os olhos. Certificou-se que não se tratava de ninguém conhecido. Aliás, aquele camarada nunca fora visto por ali. Indubitavelmente a primeira vez em meio à comunidade católica. A moça do órgão deu os primeiros acordes. Duas moças iniciaram uma canção. Oito em ponto, cravados.

A abundância de devotos se levantou em respeito ao eclesiástico. Euclides, aproveitou a deixa. Mirou o homenzinho insignificante e partiu pra cima dele com tudo. Como o ‘intruso’ se fazia o primeiro no ‘descansa bumbum’ junto ao corredor, e nos calcanhares do retábulo, agarrou a criatura pelas mangas da camisa e aos tapas o retirou do lugar que ocupava, jogando-o ao chão:
— Vai se sentar no raio que o parta. Aqui é o meu pedaço, por direito, desde que essa espelunca foi inaugurada.

O sacerdote, por azar, entrava solenemente na nave. Se aproximava do ambão (1), a ‘Mesa do Senhor’. Estancou os passos, apatetado, e a tempo de ouvir:
— Fora, meu chapa – berrava o Euclides, irritado, as veias do pescoço prestes e saltarem espavoridas e descontroladas.
Foi aí que o inesperado se fez convulsivo.

O coitado que fora desagregado aos safanões da sua quietude, se empertigou, bateu com as mãos no peito para tirar um cisco que ficara agarrado. Seguidamente puxou do bolso um par de algemas, ao tempo em que gritava para o impetuoso que lhe golpeara:
— O senhor está preso. Deita no chão, abra as pernas, mãos na cabeça. Está portando arma de fogo, tem identidade?

Euclides obedeceu, o rosto branco feito vela, pedindo, aos frêmitos (2), ‘calma, meu amigo, tenha paciência, vamos conversar’.

O reverendo tentou intervir, ‘mas com todo respeito’, levou um fora:
— Padre Espinhoso Ducano, me perdoe. Este cidadão me arrancou das minhas orações em meio a uma série de tabefes e sopapos. Seus fiéis aqui são testemunhas de que falo a verdade.

Os fiéis ficaram, logicamente, ao lado do baixinho. Ninguém ousou contestar:
— Meu nome é Pepino Comprido...
Puxou do bolso uma carteira preta e um distintivo da polícia civil:
— Sou o novo delegado de polícia desta cidade.

À passos de tartaruga, se dirigiu à saída, levando detido o Euclides, por desacato e agressão física a ele, o novo representante da boa ordem. A santa missa começou, sem mais delongas, com um minuto apenas de retardamento.

Notas de rodapé:
1) Ambão – Local dentro da igreja onde se propaga a palavra de Deus. Hoje essa palavra foi substituída por púlpito.
2) Frêmitos – No sentido do texto, aos estremecimentos, às turbulências.

Título e texto: Carina Bratt, de Sertãozinho, interior de São Paulo. 9-4-2023

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