domingo, 2 de abril de 2023

[As danações de Carina] Cotidiano número um

Carina Bratt

ENQUANTO ARIANO aguardava a esposa chegar do trabalho para começar a fazer a janta, puxou conversa com o Pirueta, seu cunhado. O jovem assistia a um programa esportivo. Como era brincalhão, Ariano resolveu tirar sarro da cara do rapaz:
— Pois é, Pirueta. Veja só como são as coisas. Meu filho, seu sobrinho, nasceu há quatro dias e até agora nem Belquior, nem Gaspar, nem Baltazar vieram lhe fazer uma visitinha de cortesia.

Sem desviar os olhos da televisão, Pirueta indagou de quem se tratavam tais figuras?
— Como disse mesmo que se chamavam?
— Gaspar, Baltasar e Melchior. Os Três Reis Magos do tempo de Jesus. Não lê a Bíblia?
— Não me faça rir. Só você mesmo para me tirar da concentração do que o camarada está falando ali do meio campo do Botafogo. Os Três Reis Magos? Cadê a Estrela de Belém?

Risos:
— Em compensação, no lugar deles apareceram para um rápido lanche, os Três Mosqueteiros:
— É mesmo, Ariano? Tô sabendo. Só não trouxeram o Alexandre Dumas à tiracolo...
— Claro que não. E nem poderiam. Estou falando dos meus vizinhos, digo dos nossos vizinhos aqui da rua: Athos, Porthos e Aramis.
Na verdade, os vizinhos de Ariano pareciam os ‘Três Mosqueteiros’ do romance, com uma diferença bastante fundamental, a bem da verdade.

Sujeitos pacatos cidadãos que não matavam nem uma barata assustada. O primeiro trabalhava como servente de pedreiro. Sofria de osteoporose, o segundo, escolhera ser taxista – melhor dizendo – defensor, ou aquele sujeito que fica de estepe no lugar do dono do carro, trabalha feito um desgraçado, e, no final das contas, leva uma porcentagem mínima nas corridas, além de arcar com o aluguel e o combustível do veículo.

O terceiro biscateava. Fazia pequenos reparos em caixas d’água, pintava uma parede aqui, outra ali, mas a maior parte das vezes enchia o saco da empregada querendo saber da moça onde ficava o ‘monte púbico’ que ele havia visto um servente de pedreiro, seu colega, mencionar:
— O que me admira neles é que foram solidários. O garotão nasceu, eles deram imediatamente o ar da graça.
— O ar de quem?
— Da graça.

— E quem é essa Graça?
— Sua besta, graça é a maneira de se fazer uma comparação. Os caras deram o ar da graça. Trocado em pirulitos: ar da presença, ou ar do comparecimento.
— Ah! Trouxeram presentes?
— Coitados, uma lembrancinha simples, cada um. O Gê (Athos) deu um pacote de fraldas, o Tonho (Porthos) uma mamadeira e o Eli (ou carinhosamente a figura do Aramis), uma bacia de plástico para os banhos diários:
— Espera um pouco. Ge, Tonho e Elí? - Você não disse que os rapazes se chamavam ou se chamam Athos, Porthos e Aramis?

— Imbecil! Fiz uma comparação tola com os ‘Três Mosqueteiros’, seu palhaço, dando o exemplo de cada um dentro dos personagens inseridos na trama de Alexandre Dumas... isso em decorrência de como você mesmo sabe, viverem juntos, andarem juntos, namorarem juntos, dormirem juntos...
— E comerem ou saborearem as mulheres juntos, suponho?
— Isso é lá com eles. Não tenho o direito de entrar nessa seara.
— Seara?
— Nesse pormenor, nessa particularidade. Entendeu?

— Não precisa ficar nervoso...
— Você me irrita, Pirueta. Não sabia que minha mulher tinha um irmão tão besta. Coitado do meu filho. Vai ter um tio fora do contexto da normalidade.
— Cuidado, Ariano. Você não está escape de cair aqui, agora, filmado...
— Cair o quê, Pirueta?
— Filmado. Filmado do coração.
Novos risos:
— Fulminado. Ful-mi-na-do. Não se preocupe. Meu coração está uma jóia.

Pirueta não deixou por menos:
— E você a usa onde?
— Como, onde?
— Seu coração não é uma joia? Joia, Ariano, se usa no pescoço ou no braço...
— Vá para o inferno, antes que me esqueça. Além de burro você é um tremendo energúmeno.
— Que é isso?
— Procure ler que saberá. Ao invés de ficar soltando pipa, balão, jogando bolinhas de gude e brincando o dia inteiro com a molecada na rua, ou vendo jogos de futebol na tevê, estude um pouco mais e deixe de falar tanta besteira, como filmado, ao invés de fulminado.

Fez uma parada básica e prosseguiu:
— Não saber o que é o ar da graça. Meu Deus!...tô rosa!
— Energúmeno. Deve ser alguma coisa comível. Por falar em comida, a que horas sai o ‘rango’?
— Assim que a sua irmã chegar do posto.
— Que posto? Ah, me liguei! Você comprou um carro. Entendi: a mana foi abastecer a charanga. E aí (o garoto largou de olhar para a televisão) vai deixar o cunhadinho aqui dar uns rolés?
— Pirueta, você para burro só falta a bursite do Lula, numa das patas.

— Espera, cunhado: burro não sofre dessa parada...
— Então, meu camarada, você está completo.
— E o carro. Vai liberar?
— Seu cabeça de ‘Cucumis Sativus’ ou melhor colocado, uma espécie de ‘Herbácea cucurbitaceae’. Sua irmã foi levar o Júnior ao posto para as primeiras vacinas e o teste do pesinho. De onde foi que você tirou esse carro imaginário?
— Falaram aí fora que você havia comprado um pé de borracha.
— Pé de quê?!

Pirueta aproveitou a brecha e caiu matando:
— Você também precisa ler mais, ô meu. Pé-de-borracha é carro, calhambeque, carreta, charanga, lata pintada, fonfom. Tá ligado?
— Só se eu vender, na esquina da zona, a sua irmã e o meu filho, dando você como brinde. Talvez aí consiga comprar um fusquinha caindo aos pedaços.
— E você, Ariano, cá pra nós: por acaso, teria aí dentro de seu peito um coração de pedra que lhe dessa tanta coragem assim?

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 2-4-2023

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