No fundo, e à superfície, o Livre mistura
os horrores do BE com as abominações do PAN, mantendo o ressentimento, o
moralismo, o revisionismo, a vocação proibicionista e a natureza totalitária de
ambos
Alberto Gonçalves
Houve quem achasse escandaloso
que Joacine Katar Moreira festejasse a eleição para o parlamento junto à
bandeira da Guiné. Eu achei ridículo, mas sou suspeito. Acho sempre ridículo
que alguém exalte o país a cuja miséria fugiu em detrimento do país que lhe
permitiu prosperar.
E sim, isso inclui aqueles
portugueses e descendentes de portugueses que agitam o estandarte do Partido
Republicano ou celebram o Bacalhau à Brás enquanto gozam dos níveis salariais
da Suíça, dos EUA ou da Austrália. Suponho que muitos dos que assinam petições
contra a dra. Joacine se comovem imenso com as manifestações de patriotismo dos
nossos compatriotas emigrados. Não querendo ser picuinhas, a incoerência
tira-lhes razão.
Aliás, as razões de certos
críticos da dra. Joacine são tão absurdas quanto as razões dos simpatizantes da
senhora. O êxito dela, segundo uma sondagem a candidata mais popular, fez-se
sobre critérios totalmente alheios aos que deviam influenciar a escolha dos
deputados. E foi a própria dra. Joacine a submeter esses critérios à avaliação
do público, ativa ou passivamente.
No primeiro caso, a dra.
Joacine declarou que as “legislativas” iriam medir a capacidade do eleitorado
em aceitar uma mulher negra na Assembleia da República. Com o devido respeito,
hã? A que título é que o eleitorado, que já “aceitou” em S. Bento resmas de
mulheres brancas e dois ou três homens negros, não estaria preparado para uma
mulher negra? A presunção tem graça. Por um lado, porque é mentira: a primeira
deputada negra aconteceu ainda antes de 1974, chamava-se Sinclética Soares
Santos e vinha de Angola (e a primeira deputada negra da democracia, Nilza
Mouzinho de Sena, pertence ao PSD e chegou à AR em 2015). Por outro lado,
porque a presunção é estúpida. Depois das quotas singulares, faltava-nos entrar
na era das quotas combinadas: de futuro, convém reservar uns banquinhos no
proverbial “hemiciclo” para transsexuais nórdicos, esquimós pernetas e anões
que fazem bolinhas em cima dos “ii”. Ou para mulheres negras e gagas.
A dra. Joacine não precisou de
explicitar o último critério. De resto, é justamente a incapacidade de o fazer
que o torna evidente. Não existe maneira diferente de o dizer (ou existe, mas
nunca mais saíamos daqui): a dra. Joacine é gaga. Às vezes, é um bocado gaga.
Às vezes, é bastante gaga. Às vezes, é gaga para lá de qualquer hipótese de
comunicação. Por causa da referida característica, alguns gozam com a dra.
Joacine, e alguns acreditam que a dra. Joacine goza com eles. Não são melhores
nem piores do que os que lhe elogiam a “coragem” por “assumir”. A propósito
disto, gostaria de informar os deslumbrados que não há coragem em se assumir um
defeito impossível de ocultar. Um sujeito com 15 dioptrias não é um herói: é um
pitosga.
Não me entendam mal. Eu
votaria num zulu cego e cocainómano empenhado na redução drástica dos impostos,
na abolição de dois terços dos ministérios e no sagrado princípio de que a vida
dos cidadãos é assunto deles. Salvo prova em contrário, a dra. Joacine viu-se
eleita apenas por ser mulher, negra e gaga, tudo em simultâneo, tudo enfiado
num bonito pacote de atributos “minoritários”. Se acumulasse com uma orientação
sexual esdrúxula, seria o “jackpot” da vitimização. Nos sifilíticos tempos que
correm, o estatuto de vítima, real ou imaginária, é uma proeza e uma virtude.
Por azar, é uma virtude que não esclarece coisa nenhuma acerca do que a dra.
Joacine pensa e, principalmente, do programa que defenderá na AR.
Quanto ao que, sob o culto da
“discriminação”, a dra. Joacine de facto pensa, não tenciono alargar-me. Por
motivos que é escusado repisar, ouvi-la falar não é uma experiência
particularmente elucidativa. Lê-la também não ajuda: a escrita da dra. Joacine
não se distingue da do académico indígena médio, logo é insuportável após três
parágrafos. Resta o programa do partido que a dra. Joacine representa. O partido
é o Livre, criado pelo grande pensador Rui Tavares para arranjar um emprego ao
grande pensador Rui Tavares. Em sucessivas eleições, a empreitada falhou.
Funcionou agora, embora com o emprego atribuído à dra. Joacine. E o que fará a
dra. Joacine no emprego?
Não queiram saber. O programa
do Livre, que espreitei na diagonal e na vertical, consta de 53 páginas
divididas em 21 temas. Os temas incluem “Economia circular”, “Igualdade,
Justiça Social e Liberdade” e “Soberania Digital”, além de 6 ou 7 capítulos “ambientais”
(“Emergência climática”, “Desenvolvimento ecológico e solidário” etc.). Ou
seja, marxismo clássico e marxismo “moderno”. No fundo, e à superfície, o Livre
mistura os horrores do BE com as abominações do PAN, preservando o
ressentimento, o moralismo, o revisionismo, a vocação proibicionista e a
natureza totalitária de ambos. Parece-me impecável.
E parece-me justo dar um
exemplo enternecedor: “Limitar o transporte aéreo às ligações onde é
efetivamente necessário”. A pequena frase reúne todos os predicados acima, e
deixa uma pessoa a pensar. Uma pessoa pensa na ingenuidade das companhias
aéreas que mantêm ligações pelos vistos desnecessárias. Uma pessoa pensa na
incúria dos viajantes que rumam a destinos que não necessitam visitar. Uma
pessoa pensa na comissão de génios que decidiria a necessidade das ligações.
Uma pessoa pensa na necessidade da rota bidiária Lisboa-Bissau. Uma pessoa
pensa se estas ideias ocorrem a adultos ou são produzidas por metástases da
pequena Greta. Quando uma pessoa não pensa, acaba a eleger a dra. Joacine,
mulher, negra, gaga e parlamentar da extrema-esquerda, uma entre três ou quatro
dezenas. Naturalmente, por estes dias, o país dedica-se a recear, exorcizar e
promover o único deputado da extrema-direita.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
12-10-2019
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