Não me interpretem mal: acho
que o grau de liberdade experimentado numa dada sociedade é directamente proporcional
à dimensão do enxovalho infligido em público aos respectivos líderes. Dito de
outra maneira, quanto mais achincalharmos quem manda em nós, mais livres somos.
Não falo de tecer reparos, criticar construtivamente, satirizar com bom gosto,
opormo-nos através do fatídico sentido de Estado. Falo de insultar com
à-vontade e baixeza, à semelhança do programa televisivo americano que mostrava
George W. Bush como um símio (as tentativas de mostrar Barack Obama de igual
forma mereceram o epíteto de "racistas" e a condenação quase geral) e
do papel higiénico britânico que ostentava o rosto de Isabel II. Durante anos, e
anos teoricamente democráticos, gozámos dessa liberdade a propósito de quase
todas as personagens do poder. Quase. A excepção era o presidente da República
(PR), ao qual se reservava no máximo uma discordância respeitosa. Salvo nas
mesas dos cafés e nas paragens de autocarro, beliscar o PR constituía uma
actividade praticada com moderação, ainda que o titular do cargo inventasse um
partido para anexar o regime, fizesse campanha declarada contra o Governo em
funções ou congeminasse uma estratégia tortuosa para favorecer activamente os
seus camaradas.Sob Cavaco, soltaram-se as amarras. De repente, comentadores,
humoristas e diletantes habitualmente comedidos desataram a atacar com
inusitada violência o alegado mais alto magistrado da nação. Alguns até
transformaram os ataques numa rotina semanal, tenham ou não razão, tenham ou
não pretexto. E embora talvez também não tenham consciência, a verdade é que
abriram o caminho para que, de futuro, nenhum PR volte a suscitar as mesuras de
antigamente. Mesmo, note-se, que seja apoiado pelo exacto PS que nunca deixou
de achar um usurpador o actual inquilino de Belém, por acaso duplamente eleito
por decisão popular. Cavaco é um PR fraquinho? Com certeza, mas pelo menos
muitos constroem uma carreira a gritar que é péssimo, enquanto de outros, que
eram de facto péssimos, insinuava-se em receosa surdina que eram fraquinhos. Em
suma, nunca fomos tão livres.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 12.-05-2013
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