segunda-feira, 13 de maio de 2013

A liberdade sob Cavaco

Alberto Gonçalves
Não me interpretem mal: acho que o grau de liberdade experimentado numa dada sociedade é directamente proporcional à dimensão do enxovalho infligido em público aos respectivos líderes. Dito de outra maneira, quanto mais achincalharmos quem manda em nós, mais livres somos. Não falo de tecer reparos, criticar construtivamente, satirizar com bom gosto, opormo-nos através do fatídico sentido de Estado. Falo de insultar com à-vontade e baixeza, à semelhança do programa televisivo americano que mostrava George W. Bush como um símio (as tentativas de mostrar Barack Obama de igual forma mereceram o epíteto de "racistas" e a condenação quase geral) e do papel higiénico britânico que ostentava o rosto de Isabel II. Durante anos, e anos teoricamente democráticos, gozámos dessa liberdade a propósito de quase todas as personagens do poder. Quase. A excepção era o presidente da República (PR), ao qual se reservava no máximo uma discordância respeitosa. Salvo nas mesas dos cafés e nas paragens de autocarro, beliscar o PR constituía uma actividade praticada com moderação, ainda que o titular do cargo inventasse um partido para anexar o regime, fizesse campanha declarada contra o Governo em funções ou congeminasse uma estratégia tortuosa para favorecer activamente os seus camaradas.Sob Cavaco, soltaram-se as amarras. De repente, comentadores, humoristas e diletantes habitualmente comedidos desataram a atacar com inusitada violência o alegado mais alto magistrado da nação. Alguns até transformaram os ataques numa rotina semanal, tenham ou não razão, tenham ou não pretexto. E embora talvez também não tenham consciência, a verdade é que abriram o caminho para que, de futuro, nenhum PR volte a suscitar as mesuras de antigamente. Mesmo, note-se, que seja apoiado pelo exacto PS que nunca deixou de achar um usurpador o actual inquilino de Belém, por acaso duplamente eleito por decisão popular. Cavaco é um PR fraquinho? Com certeza, mas pelo menos muitos constroem uma carreira a gritar que é péssimo, enquanto de outros, que eram de facto péssimos, insinuava-se em receosa surdina que eram fraquinhos. Em suma, nunca fomos tão livres.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 12.-05-2013

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