Evaristo E. de Miranda

A encíclica é densa. Merece
leitura, estudo e reflexão. Nela, a questão ecológica é abordada,não apenas em
sua dimensão “natural” stricto sensu. O documento aborda seu
contexto humano, social, político, religioso e cultural. O texto não é dirigido
apenas a bispos e católicos. Fato raríssimo, o Papa fala na primeira pessoa do
singular. Ele deixa de lado o “Nós”, o plural majestático, característico de
pronunciamentos pontifícios. Ele se dirige aos crentes (judeus, muçulmanos…) e
aos não crentes. Para falar à humanidade, o Papa evoca a responsabilidade de
todos em gerir a terra como a nossa casa comum. Ele defende um crescimento
econômico com temperança e sobriedade, fundado na mudança de comportamentos.
Novos “ismos”. A
encíclica não usa uma única vez as palavras capitalismo e socialismo. Apenas ao
evocar a história, menciona o nazismo e o comunismo. Já alguns “ismos”, de
natureza eminentemente comportamental, são de uso amplo no texto: consumismo,
individualismo, relativismo, antropocentrismo, realismo, condicionalismo e
ceticismo.
A encíclica repercutiu
positivamente na mídia. O dever jornalístico levou a muitos artigos e
editoriais com pretensão de resumir o documento. Tarefa difícil. Outros ainda
fizeram e fazem leituras seletivas do documento para sustentar, justificar ou
ampliar suas teses tradicionais. Tem gente que não leu e gostou. Outros não
leram e não gostaram. Sobre um documento que coloca muitos questionamentos,
cabem algumas questões pouco lembradas.
Ciente da complexidade do tema
abordado, o Papa Francisco reitera: “Há discussões sobre problemas
relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma vez
mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem
substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para
que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.” (188).
Pode-se indagar: os homens e as sociedades podem ser geridos por consenso?
Existe alguma nação funcionando por consenso? Quais ideologias lesam o bem
comum? Quem pode identificá-las? Qual a diferença entre necessidades (termo da
encíclica) e interesses (termo na mídia) particulares na temática ambiental?
A geografia da poluição.
O balanço ecológico do progresso planetário, logo no primeiro capítulo, é
negativo, pessimista e pouco equilibrado. Ele fala de poluição generalizada
provocando milhares de mortes prematuras. Contudo, mais generalizado ainda foi
o aumento da esperança de vida e da educação em todo o planeta, acompanhando o
crescimento industrial e a tecnificação da agricultura. Nunca se viveu tanto,
nunca se comeu tanto, nunca se estudou e se votou tanto em todo o planeta, como
atualmente.
Os problemas de poluição não
existiam nas sociedades pré-históricas. Se eles são constantes e concomitantes
ao desenvolvimento, também foram e são resolvidos pelos avanços da ciência e da
tecnologia. Na linha dessa preocupação pontifícia, por que a exportação de
indústrias poluidoras para países periféricos, como parte da estratégia de
limpeza ambiental praticada há décadas em nações desenvolvidas, não foi
lembrada?
Conversando com idosos. “Em
muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de
outrora, que agora veem submersas de lixo.” (21). Essa afirmação
parece um pouco reducionista quando consideradas as condições insalubres nas
quais se vivia até o começo do século XX na Europa e nas quais ainda vive
grande parte da população mundial. Não há razão para não se investir numa
gestão mais eficiente dos resíduos e na redução de sua produção, mas as
paisagens de outrora, mesmo na Europa, sem drenagem ou barragens, eram marcadas
por enchentes, epidemias, doenças crônicas, períodos de fome, com pessoas
subnutridas em habitats insalubres, sem aquecimento ou energia elétrica.
A memória desses idosos deve
lembrar o que era a vida cotidiana em tais paisagens, sobretudo no inverno ou
em tempos de seca. Seus filhos são mais altos e já perdem em estatura para seus
netos, graças à nutrição adequada, como ocorre agora em muitos países em
desenvolvimento.
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A encíclica não faz justiça à segurança alimentar conquistada por recordes de produção agropecuária.
Foto: Mercado Central – SP
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Progresso e tecnologia.
As sociedades economicamente desenvolvidas têm os meios para cuidar de sua
biodiversidade, para reduzir a poluição da terra e do ar, para proteger e
manter limpos os seus mares e rios. Elas universalizaram o saneamento básico
com tecnologias avançadas de gestão de efluentes, incomparáveis às utilizadas
em estações de tratamento de esgoto do Brasil, por exemplo. Nos países ricos, o
ciclo de vida das mercadorias é planejado; o lixo é classificado, tratado e
reciclado; muitos ecossistemas estão preservados e são desfrutados por uma
população com amplas garantias sociais e com acesso a uma intensa vida
cultural.
Ao associar o uso de insumos
modernos na agricultura apenas a seus possíveis efeitos tóxicos, a encíclica
não faz justiça à segurança alimentar conquistada por recordes de produção. Nem
aos ganhos de qualidade nutritiva e sanitária, e à queda no preço dos alimentos
que esses mesmos insumos, frutos de ciência e tecnologia, permitiram obter
beneficiando, sobretudo, os mais pobres. Unilaterais, os oráculos consultados
pelo Papa, não tiveram aqui e alhures o justo equilíbrio. “Para os
países pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o
desenvolvimento social dos seus habitantes” (172), diz o Papa.
Como atingir esses objetivos sem crescimento econômico e novas técnicas e
tecnologias? Por consenso?
O Papa Paulo VI já evocara o
tema ambiental, em 1971, na Pacem in terris. João Paulo II foi o
primeiro a convidar para uma conversão ecológica, apesar da mídia tratar a
ideia como novidade da Laudato Si. Ele o fez em 2002, ao assinar
com o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, uma declaração comum pela
salvaguarda da Criação, em Veneza.
Bento XVI tratou de ecologia
ao longo de todo o pontificado. Na Caritas in Veritate (2009),
ele dizia:“Quando a Igreja Católica toma a defesa da Criação, obra de
Deus, ela não deve apenas defender a terra, a água e o ar [...] mas também
proteger o homem contra sua própria destruição”. Sob seu
pontificado, o menor Estado do planeta tornou-se neutro em emissão de carbono e
adotou metas ambientais ambiciosas. Não há indústria poluidora em seus 44 ha
(só faltava!). O papamóvel foi transformado em veículo flex. Painéis solares
fornecem energia para a sala de audiências ao lado d a Basílica de S. Pedro.
Bento XVI também plantou uma floresta de 7.000 ha na Hungria, destinada a
compensar as emissões de gases de efeito estufa do Vaticano. Se o Papa
Francisco pode dirigir injunções ambientais aos outros países é porque também,
de certa forma, o Vaticano fez sua lição de casa.
Título e Texto: Evaristo E. de Miranda,
Pesquisador da Embrapa, doutor em ecologia, diretor do Instituto Ciência e Fé, ABIM,
17-7-2015
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