Tudo o que os ministros conseguem é desmoralizar as noções de justiça, de democracia e de legalidade
J. R. Guzzo
O Brasil está vivendo o que talvez fique conhecido, em algum momento do futuro, como a época do ilusionismo, ou, em linguagem mais direta, a época da falsificação pura e simples — falsificação como prática corrente e diária do exercício da atividade política. É como nos teatros tipo “lanterna mágica”: o público vê uma coisa, através do jogo de luz e de sombras, e da dificuldade do olho humano para enxergar no escuro, mas, logo em seguida, quando o palco se ilumina, todos descobrem que a realidade é outra. Essa ilusão, nas artes cênicas, é um divertimento. Na política é uma contrafação.
O Supremo Tribunal Federal, no
momento, é o centro mais ativo do Brasil na aplicação dessa trapaça: opera em
tempo integral pretendendo sustentar as “instituições”, mas o que faz, na vida
real, é anular de forma sistemática os princípios básicos da democracia e do
Estado de Direito. Nas sombras, o STF aparece como um magistrado que nos
defende, a todos nós, das ameaças que os Poderes Executivo e Legislativo
representam para a Constituição. Quando acende a luz, a realidade que aparece é
o contrário: dez
pessoas que não receberam um único voto estão ditando o que o Congresso e o
governo têm de fazer, sem prestar contas a ninguém e sem ter nenhuma
responsabilidade pelas decisões que tomam.
A anulação da lei que estabelece novas regras para o pagamento das emendas parlamentares é o último ato desse espetáculo de prestidigitação com que o STF engana o país. Faz de conta que fiscaliza se a Constituição está sendo cumprida, enquanto, na prática, exerce as funções de governo — naquilo que lhe interessa governar, é claro. A lei foi aprovada, de modo indiscutível e legítimo, pela Câmara dos Deputados; deveria, pelo que está escrito na Constituição, entrar em vigor. Mas os ministros não gostaram. Acham que a lei é ruim e, por isso, não pode valer. Façam outra. Essa não pode.
Não interessa se a lei das
“emendas do relator” é boa ou ruim — ela foi aprovada legalmente pela maioria
dos deputados e, segundo está previsto nas “instituições” que o STF diz
defender 24 horas por dia, só poderia ser anulada ou modificada por outra lei
da mesma Câmara. Se o STF dá a si próprio o direito de decidir quais as leis
que valem e quais as leis que não valem, a independência de Poderes foi para o
saco. Não se trata mais de uma exceção; virou a regra. O Congresso Nacional não
sabe mais se as suas decisões valem ou não. O Executivo sabe menos ainda. As
instituições, tão sagradas para o STF, estão indo para o diabo.
O STF não é o filtro pelo qual
se aprovam ou se rejeitam as medidas de governo; não cabe a ele decidir o que é
o “bem” e o que é o “mal” no país e na sociedade. Também não lhe cabe dar
ordens aos outros Poderes, eleitos pelo voto direto do povo brasileiro, nem
governar o Brasil. Os ministros estão se exibindo, cada vez mais, como
justiceiros de faroeste.
Tudo o que conseguem é
desmoralizar as noções de justiça, de democracia e de legalidade. Acham-se o
remédio. São a doença.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Estado de S. Paulo, via revista OESTE, 10-11-2021, 18h
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