As multidões que por causa da Covid aplaudiam o colapso deliberado da economia hoje reclamam aos berros o provável colapso da humanidade. Sem a iminência de um bom Apocalipse, a rapaziada não sossega
Alberto Gonçalves
Durante dois anos, governantes, “especialistas”, “pivôs” de telejornais e um senhor que mora ali abaixo e conduz mascarado garantiam que estávamos em guerra. Muitos acreditaram. Até que, para plagiar um bocadinho o meu amigo Tiago Dores, chegou uma guerra a sério e percebeu-se a diferença. E a diferença entre um vírus respiratório e o risco nuclear é significativa, sobretudo se os líderes e as populações ocidentais estão melhor preparados para os falsos combates do que para os verdadeiros. É mais fácil fechar a ralé em casa e multar velhinhas que comem na rua do que desaconselhar, com firmeza e custos eleitorais, um ditador de invadir e massacrar uma democracia. Uma civilização histérica com uma epidemia igual a várias, além de empenhada nos intervalos em políticas “identitárias” e “descarbonização”, não parece grande obstáculo a ambições imperiais. E não é. A fraqueza cheira-se, e o sr. Putin cheirou-a à distância.
O olfato não é sinónimo de
valentia, e a distância não é no sentido geográfico. Sabem aquela mesa com
dimensões de um “court” de ténis que o sr. Putin coloca a separá-lo dos raros
privilegiados que o visitam? Não é só demonstração ridícula de autoridade: é
também medo da Covid. Ao que consta, a criatura está desde 2020 em cuidados
extremos para não contrair a doença. À semelhança de tantos, é possível que
tenha endoidecido, com a agravante de que, loucas ou sãs, as pessoas comuns às
vezes nem sequer podiam aceder a um refrigerante em take-away, e o sr. Putin beneficia
de acesso a um certo botão vermelho. Não é bom augúrio que o futuro esteja nas
mãos de um indivíduo apavorado por um organismo microscópico. E é um sinal
terrível de que do outro lado estejam os irresponsáveis que apavoraram
sociedades inteiras a pretexto de um organismo microscópico.
O lado a que me refiro é o
Ocidente. Pelo meio, há a Ucrânia, afinal a vítima imediata da guerra
verdadeira. Não sei se o país está repleto de “neo-nazis”, conforme afiançam o
sr. Putin e os comunistas do BE e do PCP. Sei que os alegados “neo-nazis”
locais, curiosamente liderados por um presidente judeu, revelam uma bravura
que, a Oeste, já apenas conhecemos dos livros – se, entretanto, estes não
desceram ao Index por ofender esquimós ou uma adolescente “trans”. Perante o horror
real, Zelensky pegou em armas, ao contrário dos “estadistas” que, perante um
coronavírus, se refugiaram atrás de uma mesa ou de retórica autoritária. É
compreensível que, vista daqui a coragem cause estranheza – e fascínio. Num
ápice, quase todos desataram a tentar ser ucranianos. Não conseguiram.
É que o amor daquela gente à liberdade não nasceu ontem. Anteontem, os ucranianos foram os europeus menos obedientes às restrições “motivadas” pela Covid (que o governo decretou vagamente e que contaram com a oposição ou a indiferença dos poderes regionais e dos cidadãos). Para não manchar a corrente reputação dos ucranianos junto de defensores da supressão social dos “negacionistas”, prometo não mencionar o lugar europeu da Ucrânia em matéria de vacinação: digamos que não é um lugar próximo do espetacular “civismo” [sic] português. Quem gosta de liberdade prefere-a inteira, e não distingue as essenciais das acessórias. Os ucranianos são uma lição. Por azar, poucos a aprenderam. E é isso que amplia uma tragédia já enorme.
Descontando a escala e as
eventuais consequências, a irracionalidade com que se reagiu à Covid não está
longe da irracionalidade com que se exige o tipo de respostas susceptíveis de
iniciar um conflito mundial e devastador. As multidões que por causa da Covid
aplaudiam o colapso deliberado da economia e das cabecinhas hoje reclamam aos
berros o provável colapso da humanidade. Sem a iminência de um bom Apocalipse,
a rapaziada não sossega. É razoável culpar o medo, sempre o pior conselheiro, por
ambas as atitudes, mas medo é o que começo a sentir por partilhar o planeta com
tamanha quantidade de transtornados, fanáticos por “novos normais” e “pontos
sem retorno”.
O problema da Ucrânia não se
prende com a NATO, exceto na medida em que a NATO, os EUA e, por caridade, a UE
falharam na dissuasão dos apetites de Moscovo e na correspondência dos desejos
de Kiev. Houve um tempo em que teria sido plausível impedir de acontecer o que
está a acontecer. Houve um tempo em que importava à América e à Europa exibirem
o tipo de força que mantém autocratas na linha, em vez de brincarem às
“alterações climáticas” e se despejarem na dependência energética dos
autocratas. Houve um tempo em que o Ocidente podia escolher não ser aquilo em
que se tornou: uma nulidade amolecida e tendencialmente suicida. Graças aos
débeis senhores que mandam nisto, embora sejam incapazes de demonstrar que isto
ainda manda alguma coisa, esse tempo acabou.
Desgraçadamente, a Ucrânia vai
cair enquanto estado faltando apurar se e como se prolongará a resistência. A
nós, resta-nos cair no cinismo e esperar que o sr. Putin, que constatou a sua
impunidade, se fique por ali nos desafios e na carnificina. E esperar que as
sanções económicas e uns latidos soltos produzam um milagre. E esperar que a
cobardia e a irresponsabilidade dos atuais “estadistas” não os empurrem para
bravatas desvairadas. E esperar que as nossas televisões deixem de convidar
espécimes do BE e do PCP salvo em programas dedicados à vida selvagem. Vou
esperar sentado, na varanda e com um saco de água estagnada na mão, a ver
quando passa a primeira máscara Ffp2 azul e amarela.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
5-3-2022
Relacionados:
Boris Johnson e Presidente do Brasil defendem cessar-fogo urgente
Guerre en Ukraine : mensonges et manipulations - JT du vendredi 4 mars 2022
[Observatório de Benfica] A Resposta do Ocidente a Putin
Russia, the Virtue-Signalling West, and Israel
Avião da FAB vai decolar na segunda-feira para resgatar brasileiros
Ucraniana fala sobre Zelensky na TV e choca os apresentadores
Qual presidenciável do Brasil seria capaz de se comportar como Zelensky?
Rússia acusa Ucrânia de usar comunidade pacífica como escudo vivo
Putin, o czar vermelho do século XXI
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-