quinta-feira, 3 de março de 2022

Putin, o czar vermelho do século XXI

De espião da KGB a líder máximo do eurasianismo: a sombria e bem-sucedida trajetória do presidente russo Vladimir Putin. Entenda por que ele NÃO é um conservador

Brás Oscar

Em 1952, quando São Petersburgo se chamava Leningrado, nasceu Vladimir Vladimirovitch Putin. A cidade havia perdido o nome que honrava São Pedro e agora fazia referência ao nome de Lenin, e foi nesse ambiente, num apartamento comunitário do sistema soviético de moradia, que Vladimir Putin cresceu assistindo aos filmes de espião feitos pela mídia estatal da URSS, fato que, mais tarde, o faria querer entrar para a KGB, o serviço secreto da Rússia comunista.

Foto: Mikhail Limentyev/Kremlin Pool/Sputnik

O início da carreira e a ascensão ao poder

Putin cursou Direito na Universidade Estatal de Leningrado, graduando-se em 1975 com uma dissertação na área de Direito Comercial e Relações Internacionais, cujo tema era a cláusula de nação mais favorecida em acordos internacionais bilaterais.

No mesmo ano em que se graduou, Putin entrou para os quadros do Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (Comitê de Segurança do Estado), a famosa KGB.

A KGB foi uma evolução da Tcheka, a primeira polícia secreta soviética criada pelo próprio Lenin na primeira fase da revolução de 1917.

O objetivo da Tcheka era simples: caçar e catalogar todos os que pudessem ser “inimigos da revolução” e, obviamente, eliminá-los.

Após a Segunda Guerra Mundial, a URSS passa a ser a segunda maior influência global, e é nessa fase que a já renomeada KGB adquire a função de “proteger o cidadão soviético da influência ocidental e sabotar os inimigos políticos da URSS”, isto é: doutrinação política, propaganda ideológica e desinformação, através de sua rede de agentes e agências auxiliares, como a StB ― Státní bezpečnost  agência de inteligência e informação com base na antiga República Socialista da Tchecoslováquia.

Putin recebeu toda a sua formação política neste ambiente de perseguição, espionagem e assassinatos. E foi neste ambiente que ele teve grande sucesso.

Em menos de dois anos foi promovido a membro do departamento investigativo de contrainteligência, sendo rapidamente elevado ao posto de Major de Justiça especialista em inteligências estrangeiras.

Depois foi promovido a Chefe do Departamento de Fronteiras em 1985, atuando em Dresden, na Alemanha Oriental, cargo que ocupou até 1990, com a reunificação das Alemanhas. O Muro caiu e Putin retornou para a Rússia, onde atuou no departamento da KGB de Leningrado, cuja especialidade era a inteligência territorial. Ele havia sido convidado para um cargo importante na agência principal, em Moscou, mas por motivos que apenas futuramente foram compreendidos, ele preferiu algo mais discreto e com menos relevância.

No ano seguinte, 1991, durante a Perestroika – reabertura econômica da União Soviética e consequente abertura política pela Glasnost –, começavam os golpes de estado que tentavam, de um lado manter o estado soviético e do outro, consolidar o fim da União Soviética.

Os principais arquitetos de ambos os golpes eram membros da elite da KGB, entre eles Anatoli Sobchak, que pretendia consolidar o fim do regime e apoiava uma nova recondução da Rússia com uma economia mais aberta, acreditando que deste novo modo seria possível conduzir o país novamente ao seu destino imperialista, pois o socialismo à moda antiga era visto como algo decadente por ele e seus correligionários.

Sobchak era um influente agente, que havia sido professor de Putin na Universidade de Direito e, já nesta época, era conhecido por criticar o modelo do regime soviético. Sobchak entrou para o Partido Comunista mesmo com suas desaprovações ao governo, e escalou os altos graus da hierarquia burocrática, pois acreditava que só assim conseguiria conduzir as mudanças: sem pressa e dentro da legalidade positivista da burocracia.

Sobchak e Putin eram amigos desde os tempos de professor e aluno, e foi o próprio Sobchak quem muitas vezes ajudou Putin a ser promovido na KGB.  Fiel ao amigo mais velho, Putin renuncia ao seu cargo na KGB, após Sobchak se posicionar contra a facção do serviço secreto que apoiava o golpe a favor da manutenção do status quo da União Soviética.

A facção de Anatoli Sobchak sai vencedora, e no mesmo ano ele se torna o primeiro prefeito eleito de São Petersburgo, com Vladimir Putin como presidente de seu novo partido político, 0 Nossa Terra, que se apresentava como um partido liberal.

Em agosto de 1996, seu amigo Sobchak sofre um revés e perde as eleições para São Petersburgo, agora com o status de Cidade Autônoma. Não tardaria até Sobchak ser acusado de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e de privatização ilegal dos apartamentos comunitários de sua família e do estúdio de música estatal do qual sua esposa, que se tornou senadora, havia sido diretora.

Putin então correu para Moscou e, através de suas ligações políticas, conseguiu se desvencilhar do governo corrupto de Sobchak e ser indicado para o cargo de assessor do presidente Boris Ieltsin ainda em 1996. Em 1998 é nomeado ao cargo de Primeiro Oficial da Administração do Presidente, e em 1999 já é o primeiro-ministro da Rússia, ascendendo a presidência interina em 31 de dezembro daquele ano, com a dramática renúncia de Ieltsin.

Sobchak, que após a derrota em São Petersburgo foi para um confortável exílio em Paris, retornou para a Rússia apenas em 1999, pois Putin, então Primeiro-Ministro, conseguiu que a Justiça Russa declarasse extintos todos os processos contra Sobchak e encerrasse as investigações.

Ambos viajavam juntos em 2000, e Sobchak seria uma espécie de chefe de campanha de Putin. Nos anos 90, quando ambos estavam no governo de São Petersburgo, havia fortes indícios de que Putin havia se envolvido nos esquemas de corrupção de Sobchak. Em dado momento da campanha, Sobchak tem morte súbita, e levantou-se a suspeita de envenenamento e possível queima de arquivo. Novamente, Putin fez as investigações serem arquivadas. 

O Reinado de Putin

Após a crise econômica e os escândalos de corrupção na conturbada transição de regime comandada por Ieltsin, Vladimir Putin usou como mote de campanha a promessa de reconstruir o país com reformas administrativas, econômicas e com o combate aos Oligarcas, uma elite financeira formada ao longo dos anos 90, que enriqueceu com esquemas de compras de bônus de riqueza nacional e monopólio das estatais privatizadas.

Putin foi eleito oficialmente presidente da Rússia com mais de 53% dos votos, o que lhe deu uma vitória logo no primeiro turno. Desde então, Putin nunca mais saiu do poder.

Eis a sequência de seus mandatos:

- Presidente interino: 1999 - 2000;

- 1º mandato de presidente: 2000 - 2004;

- 2º mandato de presidente: 2004 - 2008;

Em 2008, a constituição russa não permitia que a reeleição para um 3º mandato consecutivo; então Putin emplaca a campanha eleitoral de Dmitri Medvedev.

Medvedev veio do mesmo grupo de alunos do curso de Direito da Universidade de Leningrado que, assim como Putin, eram alunos de Sobchak. Ele também foi seu antigo assessor ainda em São Petersburgo e havia se mantido fiel a Putin ao longo de toda a escalada ao poder.

Medvedev se elege, e obviamente nomeia Putin como seu primeiro-ministro

- Primeiro-ministro: 2008 - 2012;

- 3º mandato de Presidente - 2012 - 2018;

- 4º mandato de presidente - 2018 - até o momento.

Em 2008, Dmitri Medvedev‎, então presidente, conseguiu alterar a constituição para que o mandato presidencial passasse de quatro para seis anos. A lei, obviamente, beneficiava Putin, que todos sabiam que voltaria no próximo pleito, pois não surtia efeito no mandato de Medvedev, que durou 4 anos.

Em 2012, Putin volta e é eleito no 1º turno com 63% dos votos numa das eleições com mais denúncias e suspeitas de fraude até então na história da Rússia. Lula e Maduro foram os primeiros líderes mundiais a sair em defesa de Putin e apoiá-lo. Todos os protestos em Moscou foram abafados com muita violência policial e demonstrações de força, que se tornaram marca do novo regime.

Atualmente, o presidente russo está cumprindo o 4º mandato, que se iniciou em 2018 e acaba em 2024. Mas, se Putin for longevo, ele pode ficar no Kremlin mais 14 anos, pois em 2020 conseguiu aprovar novas mudanças na constituição. Agora o presidente, já com 6 anos de mandato, pode se reeleger mais 2 vezes, isto é, por 4 mandatos consecutivos.

Vladimir Putin pode se reeleger em 2024, ter um novo mandato até 2030 e depois se candidatar novamente, governando até 2036 se for reeleito. Caso viva até os 84 anos, chegará a um “reinado” de 37 anos no poder, igualando Robert Mugabe, ditador comunista do Zimbábue que se entronou no poder em 1980 e só saiu em 2017, aos 93 anos (Mugabe ainda viveu mais dois anos após o fim de seu governo). 

Principais feitos de seu governo

Putin comandou a guerra contra os separatistas chechenos logo na estreia de seu primeiro mandato. A Chechênia, aproveitando o clima de independência das ex-repúblicas soviéticas com o colapso do velho regime, também pleiteou suas reivindicações nacionalistas. O conflito saiu da esfera política e acabou com os chechenos perpetrando ataques terroristas em Moscou e na república do Daguestão, que se manteve pró-Rússia. Os rebeldes foram massacrados e hoje a Chechênia tem um governo local fantoche de Moscou.

No verão europeu de 2008 ele, como primeiro-ministro, e com conivência de Medvedev, instigou um movimento pseudo-separatista na Georgia, na região da Ossétia do Sul, fronteiriça com a Rússia, iniciando o que ficou conhecido como a Guerra Russo-Georgiana.

Os EUA e a OTAN chegaram a intervir, e perderam para a Rússia. Como resultado, até hoje existe uma tensão dentro da Georgia, onde a Ossétia do Sul se considera um país independente, porém só a Rússia e a Nicarágua reconhecem a região como nação independente. Na prática, a Ossétia do Sul é uma base russa gigante plantada dentro do país vizinho, pronta para ser ativada e iniciar um processo de anexação da Georgia. Não é difícil perceber que é exatamente o mesmo modelo de ação usado na Ucrânia.

Em 2013, Putin aprovou uma lei que permite que todas as regiões do país revoguem suas eleições para governadores para que o próprio Presidente nomeie novos governadores. Os critérios para as revogações são pouco transparentes, já que a Rússia sofre de uma imensa crise de insegurança jurídica.

Somam-se ainda às joias da coroa putiniana:

- O envolvimento no assassinato e tentativa de assassinato de opositores políticos. O caso mais notável é da morte de Alexandr Litvinenko com um chá envenenado com polônio. Também ganhou destaque a tentativa de assassinato de seu rival político Alexei Navalny.

- O Massacre de Beslan. Uma escola na cidade Beslan, região da Ossétia do Norte, foi tomada por terroristas chechenos, que fizeram mais de 1.100 reféns em setembro de 2004. O governo Putin resolveu fazer uma demonstração de força e não tolerância aos chechenos, e conduziu, por ordem de Putin, uma das piores negociações de reféns da história, abrindo fogo contra os terroristas numa escola lotada de alunos e professores. O resultado foram – excluindo os terroristas ― 334 mortos, dentre eles, 186 crianças. O governo ainda se aproveitou politicamente da situação para criar leis que concentravam mais poderes militares nas mãos de Putin. O episódio foi marcado por operações de desinformação e censura conduzidos pelo serviço de inteligência russo.

-  A invasão e anexação da Crimeia em 2014, violando acordos firmados com a Ucrânia de que as fronteiras do país tal qual estabelecidas na sua independência em 1991 seriam respeitadas.

- Intervenção no governo da Bielorrússia por meio do financiamento da ditadura de Lukashenko. Em 2020, Lukashenko ousou enfrentar Putin e quis bancar sua ditadura sozinho. Putin transformou a capital Minsk em um cenário de guerra urbana em poucos dias, infiltrando mercenários na cidade e ameaçando derrubar Lukashenko. O ditador bielorrusso pediu desculpas e se humilhou publicamente, aceitou mais dinheiro de Moscou e voltou a ser o testa-de-ferro de Putin para criar problemas com fronteira polonesa. Você pode ver isso em detalhes nestes 3 artigos: “Entenda a crise política na Bielorrússia”, “Putin comprou a Bielorrússia” e “Bielorrússia usa imigrantes para criar tensão na fronteira com a Polônia

- Violou o Memorando de Budapeste, um pacto firmado em 1994, em que a Ucrânia se comprometia a entregar para Moscou todo o arsenal nuclear herdado da União Soviética; em contrapartida, a Rússia se comprometia a respeitar as fronteiras atuais da Ucrânia. Zelensky tentou, sem sucesso, exigir que Putin cumprisse o acordo que havia sido firmado com Reino Unido, França e Estados Unidos como mediadores e testemunhas.

 - Desrespeitou o Pacto de Belaveja, ao invadir a Ucrânia, financiar separatistas na Georgia e intervir a favor do Azerbaijão na questão do Nagorno-Karabakh. No Pacto de Belaveja, a Rússia reconhecia a independência e integridade dos territórios das ex-repúblicas soviéticas, incluindo Ucrânia, Georgia, Armênia e Azerbaijão. O conflito entre armênios e separatistas azerbaijanos causou 4.800 mortes em seis semanas. Como a região do Nagorno Karabakh tinha cerca de 160 mil habitantes quando ocorreu a guerra, esse número seria o equivalente a 6 milhões de mortes em um mês e meio numa população como a do Brasil. Além disso, 70 mil armênios foram expulsos de suas casas quando a região foi anexada pelo Azerbaijão. 

*******

Depois deste perfil, vale relembrar que uma ala da direita brasileira resolveu elevar Vladimir Putin ao posto máximo de defensor do conservadorismo, porque, entre uma invasão de nação soberana alheia e uma ocultação do rastro de cadáveres deixado por seu regime, ele resolve se posicionar a favor da Igreja Ortodoxa Russa (conhecida por seu colaboracionismo com a KGB) e proibir travestis de ter carteira de habilitação.

Não convém, entretanto, para os cristãos brasileiros que protestam contra as intervenções de Xi Jinping na escolha dos bispos na China, se regozijarem com a aliança entre o Kremlin e o Patriarca de Moscou, já que ambas se assemelham muito: uma permissão estatal existência em troca de que não se faça críticas e se apoie o regime. O bom e velho colaboracionismo comunista.

Quanto a ser conservador por usar o porrete estatal contra travestis… Bem, cafetões agora então serão o símbolo dessa bizarra ala da direita, já que dar porrada em travesti é uma prática antiga destes “profissionais”.

Título e Texto: Brás Oscar, Brasil Sem Medo, 2-3-2022, 11h01

Relacionados: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-