De espião da KGB a líder máximo do eurasianismo: a sombria e bem-sucedida trajetória do presidente russo Vladimir Putin. Entenda por que ele NÃO é um conservador
Brás Oscar
Em 1952, quando São Petersburgo se chamava Leningrado, nasceu Vladimir Vladimirovitch Putin. A cidade havia perdido o nome que honrava São Pedro e agora fazia referência ao nome de Lenin, e foi nesse ambiente, num apartamento comunitário do sistema soviético de moradia, que Vladimir Putin cresceu assistindo aos filmes de espião feitos pela mídia estatal da URSS, fato que, mais tarde, o faria querer entrar para a KGB, o serviço secreto da Rússia comunista.
Foto: Mikhail Limentyev/Kremlin Pool/Sputnik |
O início da carreira e a ascensão ao poder
Putin cursou Direito na
Universidade Estatal de Leningrado, graduando-se em 1975 com uma dissertação na
área de Direito Comercial e Relações Internacionais, cujo tema era a cláusula
de nação mais favorecida em acordos internacionais bilaterais.
No mesmo ano em que se
graduou, Putin entrou para os quadros do Komitet Gosudarstvennoy
Bezopasnosti (Comitê de Segurança do Estado), a famosa KGB.
A KGB foi uma evolução da
Tcheka, a primeira polícia secreta soviética criada pelo próprio Lenin na
primeira fase da revolução de 1917.
O objetivo da Tcheka era
simples: caçar e catalogar todos os que pudessem ser “inimigos da revolução” e,
obviamente, eliminá-los.
Após a Segunda Guerra Mundial,
a URSS passa a ser a segunda maior influência global, e é nessa fase que a já
renomeada KGB adquire a função de “proteger o cidadão soviético da influência
ocidental e sabotar os inimigos políticos da URSS”, isto é: doutrinação
política, propaganda ideológica e desinformação, através de sua rede de agentes
e agências auxiliares, como a StB ― Státní bezpečnost ― agência
de inteligência e informação com base na antiga República Socialista da
Tchecoslováquia.
Putin recebeu toda a sua
formação política neste ambiente de perseguição, espionagem e assassinatos. E
foi neste ambiente que ele teve grande sucesso.
Em menos de dois anos foi
promovido a membro do departamento investigativo de contrainteligência, sendo
rapidamente elevado ao posto de Major de Justiça especialista em inteligências
estrangeiras.
Depois foi promovido a Chefe do Departamento de Fronteiras em 1985, atuando em Dresden, na Alemanha Oriental, cargo que ocupou até 1990, com a reunificação das Alemanhas. O Muro caiu e Putin retornou para a Rússia, onde atuou no departamento da KGB de Leningrado, cuja especialidade era a inteligência territorial. Ele havia sido convidado para um cargo importante na agência principal, em Moscou, mas por motivos que apenas futuramente foram compreendidos, ele preferiu algo mais discreto e com menos relevância.
No ano seguinte, 1991, durante
a Perestroika – reabertura econômica da União Soviética e consequente abertura
política pela Glasnost –, começavam os golpes de estado que tentavam, de um
lado manter o estado soviético e do outro, consolidar o fim da União Soviética.
Os principais arquitetos de
ambos os golpes eram membros da elite da KGB, entre eles Anatoli Sobchak, que
pretendia consolidar o fim do regime e apoiava uma nova recondução da Rússia
com uma economia mais aberta, acreditando que deste novo modo seria possível
conduzir o país novamente ao seu destino imperialista, pois o socialismo à moda
antiga era visto como algo decadente por ele e seus correligionários.
Sobchak era um influente
agente, que havia sido professor de Putin na Universidade de Direito e, já nesta
época, era conhecido por criticar o modelo do regime soviético. Sobchak entrou
para o Partido Comunista mesmo com suas desaprovações ao governo, e escalou os
altos graus da hierarquia burocrática, pois acreditava que só assim conseguiria
conduzir as mudanças: sem pressa e dentro da legalidade positivista da
burocracia.
Sobchak e Putin eram amigos
desde os tempos de professor e aluno, e foi o próprio Sobchak quem muitas vezes
ajudou Putin a ser promovido na KGB. Fiel ao amigo mais velho, Putin
renuncia ao seu cargo na KGB, após Sobchak se posicionar contra a facção do
serviço secreto que apoiava o golpe a favor da manutenção do status quo da
União Soviética.
A facção de Anatoli Sobchak
sai vencedora, e no mesmo ano ele se torna o primeiro prefeito eleito de São
Petersburgo, com Vladimir Putin como presidente de seu novo partido político, 0
Nossa Terra, que se apresentava como um partido liberal.
Em agosto de 1996, seu amigo
Sobchak sofre um revés e perde as eleições para São Petersburgo, agora com o
status de Cidade Autônoma. Não tardaria até Sobchak ser acusado de crimes de
corrupção, lavagem de dinheiro e de privatização ilegal dos apartamentos
comunitários de sua família e do estúdio de música estatal do qual sua esposa,
que se tornou senadora, havia sido diretora.
Putin então correu para Moscou
e, através de suas ligações políticas, conseguiu se desvencilhar do governo
corrupto de Sobchak e ser indicado para o cargo de assessor do presidente Boris
Ieltsin ainda em 1996. Em 1998 é nomeado ao cargo de Primeiro Oficial da
Administração do Presidente, e em 1999 já é o primeiro-ministro da Rússia,
ascendendo a presidência interina em 31 de dezembro daquele ano, com a
dramática renúncia de Ieltsin.
Sobchak, que após a derrota em
São Petersburgo foi para um confortável exílio em Paris, retornou para a Rússia
apenas em 1999, pois Putin, então Primeiro-Ministro, conseguiu que a Justiça
Russa declarasse extintos todos os processos contra Sobchak e encerrasse as
investigações.
Ambos viajavam juntos em 2000,
e Sobchak seria uma espécie de chefe de campanha de Putin. Nos anos 90, quando
ambos estavam no governo de São Petersburgo, havia fortes indícios de que Putin
havia se envolvido nos esquemas de corrupção de Sobchak. Em dado momento da
campanha, Sobchak tem morte súbita, e levantou-se a suspeita de envenenamento e
possível queima de arquivo. Novamente, Putin fez as investigações serem
arquivadas.
O Reinado de Putin
Após a crise econômica e os
escândalos de corrupção na conturbada transição de regime comandada por Ieltsin,
Vladimir Putin usou como mote de campanha a promessa de reconstruir o país com
reformas administrativas, econômicas e com o combate aos Oligarcas, uma elite
financeira formada ao longo dos anos 90, que enriqueceu com esquemas de compras
de bônus de riqueza nacional e monopólio das estatais privatizadas.
Putin foi eleito oficialmente
presidente da Rússia com mais de 53% dos votos, o que lhe deu uma vitória logo
no primeiro turno. Desde então, Putin nunca mais saiu do poder.
Eis a sequência de seus mandatos:
- Presidente interino: 1999
- 2000;
- 1º mandato de presidente:
2000 - 2004;
- 2º mandato de presidente:
2004 - 2008;
Em 2008, a constituição russa
não permitia que a reeleição para um 3º mandato consecutivo; então Putin
emplaca a campanha eleitoral de Dmitri Medvedev.
Medvedev veio do mesmo grupo
de alunos do curso de Direito da Universidade de Leningrado que, assim como
Putin, eram alunos de Sobchak. Ele também foi seu antigo assessor ainda em São
Petersburgo e havia se mantido fiel a Putin ao longo de toda a escalada ao
poder.
Medvedev se elege, e
obviamente nomeia Putin como seu primeiro-ministro
- Primeiro-ministro: 2008 -
2012;
- 3º mandato de Presidente
- 2012 - 2018;
- 4º mandato de presidente
- 2018 - até o momento.
Em 2008, Dmitri Medvedev,
então presidente, conseguiu alterar a constituição para que o mandato
presidencial passasse de quatro para seis anos. A lei, obviamente, beneficiava
Putin, que todos sabiam que voltaria no próximo pleito, pois não surtia efeito
no mandato de Medvedev, que durou 4 anos.
Em 2012, Putin volta e é
eleito no 1º turno com 63% dos votos numa das eleições com mais denúncias e
suspeitas de fraude até então na história da Rússia. Lula e Maduro foram os
primeiros líderes mundiais a sair em defesa de Putin e apoiá-lo. Todos os protestos
em Moscou foram abafados com muita violência policial e demonstrações de força,
que se tornaram marca do novo regime.
Atualmente, o presidente russo
está cumprindo o 4º mandato, que se iniciou em 2018 e acaba em 2024. Mas, se
Putin for longevo, ele pode ficar no Kremlin mais 14 anos, pois em 2020
conseguiu aprovar novas mudanças na constituição. Agora o presidente, já com 6
anos de mandato, pode se reeleger mais 2 vezes, isto é, por 4 mandatos
consecutivos.
Vladimir Putin pode se
reeleger em 2024, ter um novo mandato até 2030 e depois se candidatar
novamente, governando até 2036 se for reeleito. Caso viva até os 84 anos,
chegará a um “reinado” de 37 anos no poder, igualando Robert Mugabe, ditador
comunista do Zimbábue que se entronou no poder em 1980 e só saiu em 2017, aos
93 anos (Mugabe ainda viveu mais dois anos após o fim de seu governo).
Principais feitos de seu
governo
Putin comandou a guerra
contra os separatistas chechenos logo na estreia de seu primeiro
mandato. A Chechênia, aproveitando o clima de independência das ex-repúblicas
soviéticas com o colapso do velho regime, também pleiteou suas reivindicações
nacionalistas. O conflito saiu da esfera política e acabou com os chechenos
perpetrando ataques terroristas em Moscou e na república do Daguestão, que se
manteve pró-Rússia. Os rebeldes foram massacrados e hoje a Chechênia tem um
governo local fantoche de Moscou.
No verão europeu de 2008 ele,
como primeiro-ministro, e com conivência de Medvedev, instigou um movimento
pseudo-separatista na Georgia, na região da Ossétia do Sul, fronteiriça com a
Rússia, iniciando o que ficou conhecido como a Guerra Russo-Georgiana.
Os EUA e a OTAN chegaram a
intervir, e perderam para a Rússia. Como resultado, até hoje existe uma tensão
dentro da Georgia, onde a Ossétia do Sul se considera um país independente,
porém só a Rússia e a Nicarágua reconhecem a região como nação independente. Na
prática, a Ossétia do Sul é uma base russa gigante plantada dentro do país
vizinho, pronta para ser ativada e iniciar um processo de anexação da Georgia.
Não é difícil perceber que é exatamente o mesmo modelo de ação usado na
Ucrânia.
Em 2013, Putin aprovou
uma lei que permite que todas as regiões do país revoguem suas eleições
para governadores para que o próprio Presidente nomeie novos governadores.
Os critérios para as revogações são pouco transparentes, já que a Rússia sofre
de uma imensa crise de insegurança jurídica.
Somam-se ainda às joias da
coroa putiniana:
- O envolvimento no
assassinato e tentativa de assassinato de opositores políticos. O caso mais
notável é da morte de Alexandr Litvinenko com um chá envenenado com polônio.
Também ganhou destaque a tentativa de assassinato de seu rival político Alexei
Navalny.
- O Massacre de Beslan. Uma
escola na cidade Beslan, região da Ossétia do Norte, foi tomada por terroristas
chechenos, que fizeram mais de 1.100 reféns em setembro de 2004. O governo
Putin resolveu fazer uma demonstração de força e não tolerância aos chechenos,
e conduziu, por ordem de Putin, uma das piores negociações de reféns da
história, abrindo fogo contra os terroristas numa escola lotada de alunos e
professores. O resultado foram – excluindo os terroristas ― 334 mortos, dentre
eles, 186 crianças. O governo ainda se aproveitou politicamente da situação
para criar leis que concentravam mais poderes militares nas mãos de Putin. O
episódio foi marcado por operações de desinformação e censura conduzidos pelo
serviço de inteligência russo.
- A invasão e anexação
da Crimeia em 2014, violando acordos firmados com a Ucrânia de que as
fronteiras do país tal qual estabelecidas na sua independência em 1991 seriam
respeitadas.
- Intervenção no governo da
Bielorrússia por meio do financiamento da ditadura de Lukashenko. Em 2020,
Lukashenko ousou enfrentar Putin e quis bancar sua ditadura sozinho. Putin
transformou a capital Minsk em um cenário de guerra urbana em poucos dias,
infiltrando mercenários na cidade e ameaçando derrubar Lukashenko. O ditador
bielorrusso pediu desculpas e se humilhou publicamente, aceitou mais dinheiro
de Moscou e voltou a ser o testa-de-ferro de Putin para criar problemas com
fronteira polonesa. Você pode ver isso em detalhes nestes 3 artigos: “Entenda a crise política na Bielorrússia”, “Putin comprou a Bielorrússia” e “Bielorrússia usa imigrantes para criar tensão na fronteira com a Polônia”
- Violou o Memorando de
Budapeste, um pacto firmado em 1994, em que a Ucrânia se comprometia a entregar
para Moscou todo o arsenal nuclear herdado da União Soviética; em
contrapartida, a Rússia se comprometia a respeitar as fronteiras atuais da
Ucrânia. Zelensky tentou, sem sucesso, exigir que Putin cumprisse o acordo que
havia sido firmado com Reino Unido, França e Estados Unidos como mediadores e
testemunhas.
- Desrespeitou o Pacto
de Belaveja, ao invadir a Ucrânia, financiar separatistas na Georgia e intervir
a favor do Azerbaijão na questão do Nagorno-Karabakh. No Pacto de Belaveja, a Rússia reconhecia a independência
e integridade dos territórios das ex-repúblicas soviéticas, incluindo Ucrânia,
Georgia, Armênia e Azerbaijão. O conflito entre armênios e separatistas
azerbaijanos causou 4.800 mortes em seis semanas. Como a região do Nagorno
Karabakh tinha cerca de 160 mil habitantes quando ocorreu a guerra, esse número
seria o equivalente a 6 milhões de mortes em um mês e meio numa população como
a do Brasil. Além disso, 70 mil armênios foram expulsos de suas casas
quando a região foi anexada pelo Azerbaijão.
*******
Depois deste perfil, vale
relembrar que uma ala da direita brasileira resolveu elevar Vladimir Putin ao
posto máximo de defensor do conservadorismo, porque, entre uma invasão de nação
soberana alheia e uma ocultação do rastro de cadáveres deixado por seu regime,
ele resolve se posicionar a favor da Igreja Ortodoxa Russa (conhecida por seu
colaboracionismo com a KGB) e proibir travestis de ter carteira de habilitação.
Não convém, entretanto, para
os cristãos brasileiros que protestam contra as intervenções de Xi Jinping na
escolha dos bispos na China, se regozijarem com a aliança entre o Kremlin e o
Patriarca de Moscou, já que ambas se assemelham muito: uma permissão estatal
existência em troca de que não se faça críticas e se apoie o regime. O bom e
velho colaboracionismo comunista.
Quanto a ser conservador por
usar o porrete estatal contra travestis… Bem, cafetões agora então serão o
símbolo dessa bizarra ala da direita, já que dar porrada em travesti é uma prática
antiga destes “profissionais”.
Título e Texto: Brás Oscar,
Brasil
Sem Medo, 2-3-2022, 11h01
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