Vaclav Havel,
Praga, novembro de 2009, foto: Ondřej Sláma
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Demétrio Magnoli
Fez ontem um mês que morreu
Vaclav Havel. No dia seguinte ao enterro, 80 mil manifestantes reunidos em
Moscou interromperam por um minuto o protesto contra Vladimir Putin para
homenageá-lo em silêncio. Eles perceberam que o mundo ficou mais pobre sem
Havel. O intelectual, dramaturgo e dissidente checo ensinou, ao longo de uma
vida, que o contrário do comunismo não é o capitalismo, mas a verdade.
Havel não era um dramaturgo
excepcional, nem um ensaísta genial. Contra o cenário fulgurante da vida
literária, artística e filosófica da Europa Central, suas peças e seus textos
parecem, com apenas uma exceção notável, experimentos secundários. "A obra
mais importante de Havel é sua própria vida", disse o romancista Milan Kundera.
E, no entanto, ele fez mais diferença que qualquer outro.
A dissidência comunista nasceu
junto com a consolidação do poder bolchevique na Rússia. Antes de Hannah Arendt
iluminar os paralelos entre o comunismo e o nazismo (Origens do Totalitarismo, 1951),
figuras como Victor Serge (É meia-noite no século, 1939), Arthur Koestler (O
Zero e o Infinito, 1940) e George Orwell (A Revolução dos Bichos, 1945)
cortaram o corpo apodrecido do sistema soviético com o bisturi da literatura e
escancararam a natureza do totalitarismo. Havel inspirou-se nesses
predecessores para formular o seu diagnóstico: o mal manifestava-se como
linguagem - e, justamente por isso, contaminava a sociedade inteira.
O Poder dos Sem-Poder, de
1978, é o grande voo ensaístico de Havel. Escrito logo após um encontro furtivo
com o dissidente polonês Adam Michnik, o texto desvendou o segredo do poder
comunista tardio. O terror stalinista, com seu cortejo indescritível de
opressão e brutalidade, era coisa do passado. No lugar dele se instalara um
sistema "pós-totalitário", expressão que não pretendia conotar a
superação do totalitarismo, mas uma acomodação essencial das engrenagens de
controle da sociedade. O fundamento do sistema residia na mentira ritualizada.
Por que o administrador da
quitanda pendura na vitrine, junto com as cebolas e as cenouras, um cartaz com
os dizeres "trabalhadores do mundo, uni-vos!"?, indagou Havel. Ele
não estava "genuinamente entusiasmado com a ideia da unidade dos trabalhadores
do mundo". O cartaz fora "enviado da sede da empresa ao verdureiro,
junto com as cebolas e cenouras". O homem expunha-o porque "agia
assim há anos", "todos fazem o mesmo" e "tais coisas devem
ser feitas para que tudo corra bem na vida". O pós-totalitarismo comunista
operava com base no hábito, na imitação, no medo e num interesse pessoal
mesquinho. A doutrina que anunciara a libertação de toda a humanidade se
conservava no poder pelo estímulo organizado das inclinações humanas à
subserviência, à hipocrisia e à covardia. O poder comunista pereceria quando as
pessoas sem poder simplesmente se recusassem a desempenhar os papéis
deploráveis que lhes haviam sido designados.
Na superfície, não parece
existir nenhum traço comum entre Havel e o polonês Leszek Kolakowski. O checo
nunca foi comunista; o polonês ingressou no partido na juventude, destacando-se
como brilhante promessa. Por motivos políticos, as portas da universidade
fecharam-se ao checo; pelas mesmas razões, abriram-se de par em par ao polonês,
que cursou filosofia e, em 1950, ganhou uma viagem à "pátria do
socialismo". A visita teve consequências inesperadas, pois aquela fresta
para a "desolação material e espiritual" da URSS quebrou sua
fidelidade ideológica, convertendo-o em dissidente. Mesmo nessa condição,
porém, um abismo o separava de Havel: o polonês entregou-se à crítica da
filosofia marxista da História, transitando numa esfera teórica distante dos
interesses intelectuais do checo.
Entretanto, um fio profundo
une Kolakowski a Havel. De volta à Polônia, Kolakowski publicou um ensaio
devastador que contestava o núcleo do pensamento marxista. A História não é
previsível, escreveu, delineando um raciocínio que o conduziria à conclusão de
que o stalinismo não representava uma aberração do comunismo, mas a sua plena
realização. O dogma da previsibilidade da História é a fonte da noção de que os
destinos da sociedade devem ser depositados no partido. Tal noção, por sua vez,
esculpe a linguagem política da mentira, privando a sociedade de valores
genuínos e esvaziando a vida pública de qualquer sentido cívico.
A Revolução de Veludo, de
1989, transferiu um relutante Havel dos bastidores do Teatro Lanterna Mágica
para o Castelo de Praga. No cargo quase simbólico de presidente da
Checoslováquia, ele convidou Frank Zappa para tocar no concerto "Adeus ao
Exército Soviético", última performance pública do músico. Também evitou
que a separação entre a República Checa e a Eslováquia degenerasse nos horrores
do conflito étnico. Há três anos, como ato político derradeiro, Havel inspirou
a Declaração de Praga, que classifica o comunismo, ao lado do nazismo, como
causa dos mais terríveis crimes do século 20. O documento solicita que o 23 de
agosto, data da assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, seja transformado em dia
de memória das vítimas dos dois totalitarismos paralelos.
Dias atrás, a blogueira cubana
Yoani Sánchez divulgou um apelo em vídeo à presidente Dilma Rousseff. Yoani foi
convidada para a estreia do documentário Conexão Cuba-Honduras, do cineasta
Dado Galvão, na Bahia, em fevereiro, mas o governo cubano continua a negar-lhe
uma autorização de viagem. Ela não pode viajar porque, como ensinou Havel,
escolheu "viver na verdade", recusando-se a seguir o roteiro escrito
pelo pós-totalitarismo. Todos nós podemos erguer um brinde em memória do
dissidente checo. Dilma tem a oportunidade de homenageá-lo com um gesto
especial: intercedendo em favor de Yoani. Nossa presidente fará uso desse
privilégio ou preferirá celebrar uma mentira emoldurada por cebolas e cenouras?
Título e Texto: Demétrio
Magnoli, Sociólogo, Doutor em Geografia Humana - O Estado de S.Paulo,
19-01-2012
Colaboração: Álvaro Pedreira
de Cerqueira
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